segunda-feira, 11 de novembro de 2013

“O amor nos tempos do capitalismo”, de Eva Illouz ou Subsídios para dramaturgos às voltas com as relações dramáticas na contemporaneidade





Ao definirmos como contemporâneo o teatro que, depois da Segunda Guerra, vem buscando afastar-se com maior ou menor intensidade da forma dramática convencional – e o Teatro do Absurdo pode ser considerado um ponto inaugural da nova fase –, abarcamos um número incontável de manifestações as mais diversas, convivendo pacificamente ou não com espetáculos que conservam alguns dos princípios fundamentais do drama.

O citado afastamento da forma dramática pode se dar por meio da fragmentação, por exemplo, da descontinuidade cronológica e consequentes diluição ou embaralhamento do fluxo causal, bem como da indeterminação de tempo e lugar, entre tantas outras possibilidades de subversão. Embora os personagens também tenham se reconfigurado nesse período, parece ser no terreno das relações que o teatro contemporâneo tem se mantido mais próximo do drama. Passados tantos séculos desde Aristóteles, a premissa de que a cena é espaço de ações humanas continua válida. Tanto que Jean-Pierre Sarrazac, um dos maiores pensadores da contemporaneidade teatral, pondera que nem todos os componentes dramáticos precisam ser negados, mas transformados de acordo com a própria evolução dos tempos.

É possível observar em grande parte dos textos mais recentes – à exceção de Heiner Müller e Sarah Kane, para ficarmos em dois autores mais conhecidos – que as relações entre personagens continua “levando a ação para a frente”, ou seja, se mantém como motor da situação figurada ou transfigurada na cena. A peça transgride a forma dramática (às vezes bem pouco) em sua estrutura, mas se mantém absolutamente fiel às relações interpessoais e aos conflitos, tão caros ao drama. Assim, é comum vermos crises amorosas, turbulências entre pais e filhos e amizades em cheque, por exemplo, ilustradas com projeção de filmes e legendas ou editadas como cinema, encenadas em lugares nada convencionais, “performatizadas” com música e dança e assim por diante.

No entanto, quem são esses “personagens contemporâneos” em suas crises interpessoais? Em que fontes podem dramaturgos, encenadores e atores buscar referências para a criação desses seres? Uma obra estimulante nesse sentido é “O amor nos tempos do capitalismo”, da socióloga Eva Illouz. O volume, publicado pela editora Zahar, reúne três conferências que abordam o tema do afeto e as transformações no modo de encará-lo e lidar com ele, no contexto do capitalismo.

No primeiro capítulo, a autora aborda o advento da psicanálise e investiga o modo como as ideias freudianas invadiram aos poucos os mundos corporativo e social, transformando as relações. Afirma ainda que o feminismo, fortalecendo-se com os postulados da psicologia, foi igualmente responsável pelas transformações que vieram a ocorrer tanto na esfera privada quanto na pública.

O tema é aprofundado no capítulo dois, em que Illouz dirige o olhar para o indivíduo e seu convívio amoroso e familiar, analisa as estratégias de autorrealização e manutenção dos laços, muitas vezes, graças a interesses materiais e ideais de certos grupos (profissionais, clínicas, indústria farmacêutica, programas de TV, etc).

Finalmente, no último trecho, intitulado sugestivamente de “Redes românticas”, o foco é o campo do envolvimento virtual entre as pessoas, da mercantilização e da textualização do afeto (sua transformação em linguagem pura), capazes de anular o corpo, pressuposto fundamental para o sentimento amoroso.

A citação abaixo dá uma ideia do quanto os estudos de Eva Illouz podem alimentar a criação de personagens e relações interpessoais:

..."a cultura do consumo e a indústria da moda desempenharam um papel importante, ao acentuarem o manejo deliberado do eu e a criação de impressões programadas para agradar e seduzir outras pessoas. Isso marcou uma mudança significativa em relação ao eu do século XIX, que era menos fragmentado e menos dado a manipulações dependentes do contexto, porque era moldado por uma ideia holística do caráter”. p. 115

Para a autora, no chamado “capitalismo afetivo”, afeto e economia interferem-se mutuamente, moldando-se um ao outro, a ponto da vida afetiva seguir “a lógica das relações econômicas e da troca”. E quando a linguagem da psicologia se entrelaça aos repertórios do mercado, “os dois oferecem novas técnicas e sentido para cunhar novas formas de sociabilidade” – farto material de pesquisa para o teatro contemporâneo.

Adélia Nicolete







quarta-feira, 14 de agosto de 2013

"Sleep no more" - hospede-se no Hotel McKittrick e tenha seu sono roubado



(Foto: internet)


Entre final de março e início de abril de 2013, passei duas semanas em Nova Iorque para estudos complementares do doutorado em Pedagogia do Teatro. O tema da tese foi a integração entre linguagens artísticas como fundamento para a criação dramatúrgica, tendo como foco a arte contemporânea.

Nas postagens anteriores comentei sobre museus, exposições, grupos teatrais e performances. Nesta, que será a última da série, tratarei de um espetáculo em cartaz no circuito off Broadway e que reúne algumas das principais características do teatro contemporâneo: Sleep no more, uma releitura do Macbeth, de Shakespeare.


Ao voltar à companhia de sua esposa, com as mãos manchadas de sangue após o assassinato do rei Duncan, Macbeth, ainda impressionado com o que acabara de fazer, afirma ter ouvido uma voz que gritava “Nunca mais dormirás! Macbeth assassinou o sono!...” [“Sleep no more! Macbeth does murder sleep...”]. Dali em diante, seus dias serão vividos como num pesadelo, até a luta final, que o levará ao sono definitivo. Foi justamente esse clima de pesadelo, conspiração e morte que o grupo inglês PunchDrunk pretendeu recriar em seu espetáculo Sleep no more. A ação foi transposta para os anos 1920/30 e, em vez de um palácio, é um hotel que abriga a tragédia.

Na verdade o termo correto não seria espetáculo - começa daí o não-convencionalismo da proposta. O espectador-hóspede que lota as sessões diárias, e que frequentemente retorna, faz o check in para uma experiência não só artística, mas também lúdica e até psicológica. É preciso deixar para trás bolsas e casacos, assim como um modo de ver e viver o teatro.

                                            (Foto: internet)

Um conjunto de armazéns em Chelsea foi reformado para simular um hotel, o McKittrick, com cinco andares e cerca de cem ambientes. Uma lenda foi criada em torno dele, o que reforça a atmosfera de suspense e de filme noir sugerida pelo grupo.

Depois de registrados no lobby e de ganhar o seu cartão de acesso (uma carta de baralho), os hóspedes são encaminhados ao Manderlay, o bar do hotel, ainda no térreo. Gelo seco, luz baixa, música retrô e muito suspense sugerem o que virá a seguir: uma aventura particular e consciente num pesadelo/jogo coletivo.

(Foto: internet)

A tensão começa quando somos proibidos de falar e se intensifica ao sabermos que é mais seguro fazermos o percurso sozinhos. A cada um está reservada uma máscara branca, que deverá ser usada durante toda nossa permanência no local, do contrário, poderemos ser confundidos com o staff do hotel ou, pior, com algum dos personagens da tragédia. A aceitação das regras e desse jogo de faz de conta é fundamental para que o espetáculo se transforme em experiência, pois é a partir disso que cada um poderá criar a sua própria narrativa, independente daquela recriada por Shakespeare a partir de relatos históricos, ou da releitura proposta pelo grupo.

Do restaurante, já devidamente mascarados, somos levados por um corredor escuro até o elevador. Um certo número de hóspedes é deixado de andar em andar. Livres, para fazer o percurso que quisermos, podemos seguir o primeiro personagem que passar pela nossa frente, apreciar uma performance de dança, subir e descer escadas, explorar as dezenas de espaços detalhadamente cenografados – sempre sob pouca luz e com uma trilha musical bastante sugestiva.


(Foto: internet)

Assim, conforme o trajeto dos atores ou nosso desejo de exploração, nos vemos na enfermaria de um hospital, numa sala de jantar, num escritório, numa botica, no ateliê de um taxidermista, num salão de baile, numa alcova, numa ampla sala de estar, num banheiro, num jardim abandonado, num cemitério e tantos outros espaços disponíveis à nossa curiosidade. É possível abrir armários e gavetas, sentar-se ou deitar-se, apreciar objetos e obras de arte, ler um livro, um prontuário médico e até abrir a correspondência de Lady Macbeth, enquanto uma horda de mascarados passa correndo no encalço de algum personagem.

Ficamos com a impressão de ter entrado em um labirinto ou na toca do coelho de Alice. Tudo pode acontecer no instante em que abrirmos uma porta ou que atingirmos o topo da escada. Um braço pode aparecer do nada, impedindo determinado trajeto e, ao tentarmos escapar de um ambiente que nos oprime, nos vemos, outra vez, na sala escura de onde saímos há pouco. A imaginação tem papel fundamental na nossa falta de ar e na ansiedade. Nossas referências, principalmente cinematográficas e literárias, tratam de dar o devido tom de terror, paixão e suspense que complementam o trabalho da encenação.

                                              (Foto: internet)

A ausência de texto verbal também por parte do atores abre inúmeras possibilidades de leitura. São todos ótimos dançarinos e performers, preparados, inclusive, para o caso de algum espectador (em geral os que já assistiram algumas vezes) que tente contracenar ou interferir na ação. O retorno ao hotel é estimulado pela produção, que envia e-mails constantes convidando os antigos hóspedes, inclusive para sessões especiais.


(Foto: internet)


A estrutura do projeto é impressionante e conta com cerca de oitenta colaboradores, entre artistas, cenotécnicos, seguranças e pessoal administrativo. O esquema de acesso é inusitado: a partir das 19h é possível hospedar-se a cada quinze minutos, desde que tenha sido feita reserva, ou seja, a performance começa e novo público é acrescentado periodicamente. Há também um jantar opcional, servido durante a sessão a quem tenha feito a solicitação antecipadamente.

É permitido sair logo que se complete a primeira hora da performance, mas a maioria prefere permanecer até as 22h, quando a sessão é encerrada e todos são convidados a descer para o bar do hotel, onde haverá novas performances e shows musicais.


(Foto: internet)


Essa mistura de teatro, dança, show e role-playing game solicita uma postura inusitada do espectador, que precisa estar disposto a colaborar criativamente para a efetivação da obra. Sabemos, pelos relatos, que há quem deteste Sleep no more e se diga arrependido por não ter aproveitado a noite com o Rei Leão. São os mesmos que afirmam não ter entendido nada, não ter conseguido ver nada de interessante, exatamente como acontece num sem número de espetáculos não-convencionais. O problema não está nem nos espetáculos, nem nos espectadores. É só uma questão de preferência.

Se você gosta do teatro tradicional, com uma boa trama, definida e compreensível, se gosta de sentar e ser entretido, a Broadway tem ótimas opções. E se você encara numa boa o teatro processional, se não faz questão de uma história imediatamente apreensível, se está disposto a “trabalhar” criativamente; se busca emoções fortes e colocar-se em risco, ainda que imaginário, ou se está buscando viver uma experiência diferente, é ao Hotel McKittrick , em Chelsea, que você deve ir. Macbeth espera por você para uma noite insone.


(Foto: internet)


Informações sobre todos os horários, preços, reservas, etc:


Adélia Nicolete

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Meu encontro com Dionísio no Tabernáculo do Brooklyn



Desde que começamos a fazer teatro, ouvimos que ele nasceu dos rituais primitivos e que, com o tempo, muitos dos elementos originais foram se perdendo. Os deuses agrários foram substituídos por mitos ligados à pólis; a procissão comunitária, acompanhada de canto e dança foi reduzida a coro e atores; a celebração, antes compartilhada por todos, deu lugar ao espetáculo (algo a ser visto). 

A partir do teatro burguês, o distanciamento entre a cena e o público cresceu a tal ponto, que se tornou mais fácil encontrar a representação teatral ligada ao rito na missa e nos cultos do que propriamente no teatro.

O teatro contemporâneo vem, aos poucos, propondo a retomada do caráter de comunhão, de celebração e de cerimônia compartilhada com o público que, de audiência, passa a participante. O termo espetáculo é substituído por evento, experiência ou acontecimento, dado que não é para ser visto apenas, mas para ser vivido, experienciado. Dessa forma, teatro e ritual retomam os laços originais ao mesmo tempo em que são relembrados os laços comunitários.


Teatro da Vertigem - O  livro de Jó
(Foto: João Caldas)
Nesse espetáculo, que ocupou diversos ambientes de um hospital (nessa foto, Hospital Umberto I, em SP, capital), o público acompanhava a trajetória de Jó, o herói bíblico, desde suas provações primeiras - situadas no hall de entrada -, até a manifestação final da divindade, ocorrida no centro cirúrgico, num dos andares superiores.



Vivi recentemente uma experiência desse tipo: teatro e ritual religados, comunidade estabelecida, arrebatamento, celebração. Mas foi em uma igreja, o Tabernáculo do Brooklyn, em Nova Iorque. Não por coincidência, na celebração da Páscoa cristã.



Dionísio - deus do teatro
Filho bastardo de Zeus, o senhor do Olimpo, teve dois nascimentos.
O primeiro Dionísio, chamado Zagreu, filho de Perséfone, foi perseguido, morto e dilacerado pelos titãs, a mando de Hera. Seu coração, ainda vivo, foi engolido por Zeus, que fecundou a mortal Sêmele.
A segunda gestação foi completada na coxa de Zeus, dada a morte prematura da gestante.
Uma das vertentes do mito registra que Dionísio foi criado pelos sátiros, às escondidas de Hera. Com eles teria aprendido o cultivo da uva e a fabricação do vinho - bebida a ele atribuída.
É dos rituais em honra a esse deus, em especial na região da Grécia antiga, que se atribui a origem do teatro ocidental.




À semelhança de Dionísio, Cristo também teve um nascimento milagroso. Filho de Deus com uma mortal, foi perseguido, crucificado, morto e, três dias após o seu sepultamento no ventre da terra, teve proclamada a sua ressurreição.
O sacrifício a que foi submetido é periodicamente relembrado e reencenado simbolicamente por meio do pão (seu corpo) e do vinho (seu sangue).



O coro presente no teatro grego (aqui proposto por Woody Allen em seu filme Poderosa Afrodite), remontava ao primitivo coro de sátiros (homens-bode), responsável por levar a imagem de Dionísio pela comunidade até o altar. Seus cantos e poemas em honra ao deus, aliados a outros elementos, teriam dado origem à tragédia.


(Foto: internet)
Coro cristão do Tabernáculo do Brooklyn, de caráter não denominacional, cuja performance é famosa em todo o mundo.
Seus cantos de louvor abrem e fecham a cerimônia, sendo retomados ao longo do ritual.
Neles são narrados a vida de Cristo, solicitados seus favores e celebrada sua vitória sobre a morte, como pode ser visto nos links abaixo:






Anfiteatro Herodes Ático - Atenas - modelo de teatro romano
(Foto: internet)


Tabernáculo do Brooklyn - Nova Iorque
Arquitetura totalmente baseada no espaço teatral, com divisão clara entre cena, orquestra, área para os convidados ilustres e celebrantes, área para o público.
(Foto: internet)


Dois pavimentos destinados ao público.
(Foto: internet)


O público fica à vontade para participar durante a evolução do coro.
Pode-se cantar, dançar, manifestar-se em voz alta,  ocupar todo o espaço. São momentos reservados ao coletivo.
Há turistas de todo o mundo que talvez, mais do que prestigiar um culto cristão, vai até lá para participar de um encontro com o sagrado em uma atmosfera de festa e reflexão.
(Foto: internet)


Ao centro, prédio do Brooklyn Tabernacle
Momentos antes de cada celebração, vários fiéis ficam encarregados de recepcionar amistosamente os visitantes e orientá-los pelo local. Estão todos vestidos com suas melhores roupas (roupa de formatura, como se diz) e é notável a alegria do encontro realizado a cada semana.
Uma atmosfera de acolhimento é criada desde a saída do metrô!
(Foto: Adélia Nicolete)



O pastor-corifeu Jim Cymbala conduz o culto 
(Foto: internet)
Bom roteiro, oportuno; boa argumentação.
O pastor é o porta-voz do deus. Julga-se tomado/inspirado por ele. Não é, portanto, aborrecido ou entediante. Há uma preocupação com os gestos, a entonação e a modalização da voz em busca de efeitos emocionais no público.
Há toda uma performance, enfim, que alia à solenidade necessária ao culto a bondade e a simpatia que todos buscam no pai.




O sacrifício de um animal (em geral um bode), em honra a Dionísio e o cordeiro imolado como símbolo de Cristo, são substituídos pelo envelope de contribuição. Nele, o sacrifício em dinheiro vem acompanhado do nome da pessoa (opcional) e o benefício alcançado ou solicitado.
(Foto: internet)



Ao final da cerimônia, um tempo para avisos da comunidade, para a divulgação do site, do almoço comunitário e das festas promovidas para os jovens. 
Por último, a distribuição de filipetas do espetáculo teatral que será realizado ao meio dia, ali mesmo no templo/teatro. Em cartaz: "A estória do amor - inspirada na sagrada família". 

Independente do credo ou da posição que sem com relação aos cultos religiosos atuais, é inegável o efeito transformador desse tipo de evento. Mais do que a fé e as estratégias desenvolvidas para sua potencialização, o que mobiliza a todos no ritual é o encontro comunitário e o estabelecimento de uma zona de confiança e identificação com um mesmo objetivo.
Por uma hora e meia aquela nave cumpre uma rota fora do dia-a-dia. Cria-se um intervalo de tempo e espaço, situação em que tudo funciona em outro ritmo e segundo princípios diversos. Concluída a travessia, saímos outros também, transformados, renovados, especialmente pelo contato com o belo.
Não seria essa uma das tantas características do teatro e da arte? 





Adélia Nicolete


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quarta-feira, 10 de julho de 2013

GUTAI - arte japonesa do pós-guerra exposta no Museu Guggenheim




Motonaga Sadamasa - Água - Obra recriada pelo artista a pedido do Museu  Guggenheim.
(A obra original é de 1956, feita com tubos amarrados em pinheiros)
 Tubos de polietileno de diferentes larguras, contendo água colorida, sugerem  pinceladas gigantes que captam a luz do sol. 
(Foto: Adélia Nicolete)


Entre 15 de fevereiro e 8 de maio de 2013, o museu Guggenheim de Nova Iorque ofereceu a exposição especial Gutai: Splendid playground, apresentando diversas obras de um grupo de vanguarda pouco conhecido do grande público.

Fundada em 1954 pelos artistas plásticos Jiro Yoshihara, Akira Kanayma, Saburo Murakami Saburo, Kazuo Shiraga e Shozo Shimamoto, a Gutai Bijutsu Kyokai (Associação Artística Gutai) permaneceu ativa até 1972 em Ashiya, uma cidade cosmopolita próxima a Osaka, no Japão. Congregou cerca de 60 criadores ao longo de sua história, aliando performance, pintura, instalações e arte interativa. 




(Fotos: internet)

O nome "Gutai" pode ser traduzido literalmente por "concretude" e está intimamente ligado à exploração de materiais realizada por seus membros. No entanto, é possível traduzi-lo também como “incorporação” ou “personificação” - um modo de usar todo o corpo como ferramenta para a criação de uma obra.

O diálogo entre a arte tradicional japonesa - em especial a caligrafia, feita em papel de arroz e, necessariamente, rápida e espontânea - e o experimentalismo ocidental, rendeu ao grupo um tipo de ação que veio a se tornar precursor do happening e da arte conceitual, segundo alguns críticos.



(Fotos: internet)

Desde suas primeiras propostas, os artistas Gutai procuraram quebrar as barreiras entre a arte, o público comum e a vida cotidiana.
As instalações ao ar livre de 1955 e 1956, realizadas na praia e em um parque de pinheirais, definiram o cenário para as estratégias artísticas do grupo, trazendo a arte para fora dos espaços expositivos convencionais. 






Saburo Murakami - Laceration -  1956
(Fotos: internet)

A performance em que o artista se atira através de telas de papel esticado demonstra o desejo Gutai de “liberar o grito da própria matéria”. 
Algumas de suas obras combinavam a irreverência dadaísta e uma certa dose de automatismo a elementos próprios da arte japonesa: os gestos da pintura sumiê, as falhas aleatórias tão valorizadas na tradição cerâmica e a reverência para com os materiais (mesmo quando eles são aparentemente desprezados,
 como na "destruição" acima).




Kazuo Shiraga pintava prioritariamente com os pés. Suspenso por um balanço em algumas performances, evitava as habilidades convencionais das mãos.
(Foto: internet)



Atsuko Tanaka – Work (Yellow cloth) – 1955
(Foto: Adélia Nicolete)

Os trabalhos conceituais de Tanaka que exploram pedaços de tecido descartados, além de corresponderem a um dos itens do Manifesto Gutai (a beleza das ruínas e dos materiais em deterioração), ampliam os limites da pintura e redefinem a noção de beleza. No caso dessa obra, Tanaka respondeu ao desafio de criar um trabalho com as condições mínimas, o que resulta numa espécie de pintura monocromática.
A única interferência da artista encontra-se na colagem dos tecidos, estando ausentes quaisquer outras, inclusive a assinatura.







Atsuko Tanaka - Electric dress - 1956
(Fotos: internet)

Obra mais conhecida da artista, composta por lâmpadas e fios elétricos, foi criada para um grande evento do grupo em 1957.




O Gutai realizou um conjunto de pinturas gestuais ligadas ao movimento da action painting e, ainda inspirado por Jackson Pollock, aliou muitas de suas ações – em especial aquelas de cunho político – à ampla divulgação pela imprensa.
Suas iniciativas visavam a combater a passividade e o conformismo de grande parte da população. Alertar  para as condições que, décadas antes,  haviam permitido os desmandos do  governo militar.
(Foto: internet)

Durante todo seu período de atividades, o grupo assumiu novos desafios artísticos em relação ao corpo e sua ação direta com os materiais, o tempo, o espaço, a natureza e a tecnologia. Um de seus princípios era encarar a arte como um encontro vivencial sem mediação entre artista, gesto e material.
À sua maneira, os artistas desejavam ajudar a reconstruir a democracia, demonstrando e incentivando atos simbólicos de independência. Muitas vezes usavam o corpo todo nas pinturas ou convocavam os espectadores a interagir.
(Foto: internet)


Contra o pano de fundo da guerra e do totalitarismo, o Gutai forjou uma ética da liberdade criativa. Seus eventos estenderam-se ao teatro, à música e ao cinema, tendo influência marcante na arte de vanguarda japonesa e internacional.


Yoshihara escreveu o Manifesto Gutai em 1956. Ele pode ser visualizado em 


Adélia Nicolete


quarta-feira, 19 de junho de 2013

Contact Gonzo - contato improvisação made in Japan




(Foto: internet)

De setembro de 2012 até meados de 2013, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MOMA) exibiu uma série de performances ao vivo no projeto Performing Histories: Live Artworks Examining the Past – uma pequena mostra de trabalhos envolvendo aspectos históricos do século 20, refletindo sobre a contemporaneidade e traçando perspectivas futuras. 

Minha estada na cidade coincidiu com as apresentações do contact Gonzo, de Osaka – um grupo de jovens que migraram da dança e contaminam suas improvisações com as técnicas de contato, com as artes visuais, a música, a internet, as artes marciais e a pesquisa de site-specific. “Baseado na força física e na agilidade, bem como nas relações de confiança dentro do grupo, o contact Gonzo equilibra elementos da dança contemporânea, da performance, e das culturas urbanas e popular.”, informa o cartaz da mostra.



(Foto: Adélia Nicolete)


O grupo teve início em 2006 com apenas dois componentes. Por seu interesse em atividades que envolvessem destreza, resistência e risco, já haviam, por exemplo, rolado de colinas e escalado escarpas, além de praticar futebol e pesquisar artes marciais de origens diversas.

Da mistura dessas experiências com o contato improvisação nasceu um tipo de performance que não propõe quaisquer narrativas ou sentidos, mas somente a ação em si., no momento em que acontece.

O nome Gonzo deriva justamente dessa característica. Esse termo ficou conhecido nos anos 1970 por designar um estilo jornalístico que abre mão da narrativa objetiva e distanciada. Nele, o texto, sempre em primeira pessoa, é mais o registro das impressões de seu autor ou um exercício literário que propriamente a reportagem dos fatos stricto sensu


(Foto: internet)


Embora se apresente em recintos fechados, como o saguão do MOMA, o grupo tem se destacado pela pesquisa extramuros, em especial em lugares de grande afluência de pessoas. Há quase sempre a delimitação de um espaço cênico, mas nada impede que o público o atravesse. Pode-se conversar, atender o telefone, entrar e sair, pois o grupo permanece absorvido numa espécie de jogo dramático. 

Objetos são atirados, água é jogada uns sobre os outros. Socos, pontapés, voadoras e golpes diversos visam aparentemente a eliminar o maior número de participantes, até que reste um último sobrevivente, afinal, a palavra gonzo é uma gíria irlandesa popular nos Estados Unidos qu designa o último homem a cair num concurso de bebedeira. No entanto, em momento algum o espectador é exposto ao risco. 



(Foto: internet)

Não existe uma preocupação em diferenciar cena e bastidores. Os participantes se aquecem às vistas do público, como se fossem disputar alguma partida; as roupas são comuns - “roupas de guerra”, como se costuma dizer em teatro. Os movimentos começam tranquilos, como se procurassem reconhecer o território ou perceber as intenções uns dos outros.

À medida que o jogo transcorre e as provocações mútuas se sucedem, somos surpreendidos pela destreza dos rapazes, sua força de ataque e sua capacidade de se desviar, de cair, de retornar à arena. Ficamos em dúvida se aquilo machuca, ou seja, criamos nós uma narrativa que envolve disputa, confronto, vencedores e perdedores. Tomamos partido, sentimos piedade, refletimos sobre a resistência à dor, sobre a gratuidade da violência, os jogos de poder e de força e assim por diante.



(Foto: internet)

O coletivo conta hoje com quatro a seis participantes. A interlocução com outros artistas tem sido um desafio para o grupo e, ao mesmo tempo, um modo de ampliar sua área de atuação. Há fotógrafos e videomakers, que registram as performances, permitindo não só a divulgação midiática do contact Gonzo como também a sua participação em catálogos, exposições e mostras. Músicos improvisadores “jogam” com os performers podendo, inclusive, arriscar-se a um contato mais concreto que não apenas sonoro.



(Foto: internet)


A apresentação a que assisti foi filmada com uma câmera fixa próxima ao solo, mas não contou com nenhuma trilha sonora. Além dos ruídos provocados pela própria performance - respiração dos atores, garrafa plástica de água caindo no chão ou sendo amassada, tapas, golpes, disparos de flash da câmera descartável usada em cena, quedas, escorregões -, ouvia-se apenas o som do museu em pleno funcionamento.

Curioso que senti muita falta de uma trilha específica ou mesmo improvisada. Tive a necessidade de imaginar alguns tipo de música durante a performance, talvez por achar que isso ajudaria a compor uma narrativa de tensão, de aventura, de desespero, ou uma atmosfera circense que fosse. 

Condicionamento difícil de ser eliminado esse da busca de sentido! Embora eu acredite que ele não precisa ser propriamente eliminado, é um exercício e tanto desvincular a fruição pura e simples da obra da construção emocional ou racional de uma narrativa.




(Foto: internet)


contact Gonzo tem se apresentado em várias partes do mundo, explorando locais inusitados. Já esteve no Rio de Janeiro, em um festival, e recebeu convites para interagir com a obra de Oscar Niemeyer, em Brasília.


O blog do grupo, em japonês, é:



Recomendo o acesso aos vídeos nos links abaixo:





Um entrevista com um dos fundadores do grupo encontra-se em:


O programa completo de exibições do MOMA, citado no início do texto pode ser visto em:



Finalmente, informações sobre o Gonzo Journalism, acessar:



Adélia Nicolete