Ao definirmos como
contemporâneo o teatro que, depois da Segunda Guerra, vem buscando
afastar-se com maior ou menor intensidade da forma dramática
convencional – e o Teatro do Absurdo pode ser considerado um ponto
inaugural da nova fase –, abarcamos um número incontável de
manifestações as mais diversas, convivendo pacificamente ou não
com espetáculos que conservam alguns dos princípios fundamentais do
drama.
O citado afastamento da
forma dramática pode se dar por meio da fragmentação, por exemplo,
da descontinuidade cronológica e consequentes diluição ou
embaralhamento do fluxo causal, bem como da indeterminação de tempo
e lugar, entre tantas outras possibilidades de subversão. Embora os
personagens também tenham se reconfigurado nesse período, parece
ser no terreno das relações que o teatro contemporâneo tem se
mantido mais próximo do drama. Passados tantos séculos desde
Aristóteles, a premissa de que a cena é espaço de ações humanas
continua válida. Tanto que Jean-Pierre Sarrazac, um dos maiores
pensadores da contemporaneidade teatral, pondera que nem todos os
componentes dramáticos precisam ser negados, mas transformados de
acordo com a própria evolução dos tempos.
É possível observar em
grande parte dos textos mais recentes – à exceção de Heiner
Müller e Sarah Kane, para ficarmos em dois autores mais conhecidos –
que as relações entre personagens continua “levando a ação para
a frente”, ou seja, se mantém como motor da situação figurada ou
transfigurada na cena. A peça transgride a forma dramática (às
vezes bem pouco) em sua estrutura, mas se mantém absolutamente fiel
às relações interpessoais e aos conflitos, tão caros ao drama.
Assim, é comum vermos crises amorosas, turbulências entre pais e
filhos e amizades em cheque, por exemplo, ilustradas com projeção
de filmes e legendas ou editadas como cinema, encenadas em lugares
nada convencionais, “performatizadas” com música e dança e
assim por diante.
No entanto, quem são esses
“personagens contemporâneos” em suas crises interpessoais? Em
que fontes podem dramaturgos, encenadores e atores buscar referências
para a criação desses seres? Uma obra estimulante nesse sentido é
“O amor nos tempos do capitalismo”, da socióloga Eva Illouz. O
volume, publicado pela editora Zahar, reúne três conferências que
abordam o tema do afeto e as transformações no modo de encará-lo e
lidar com ele, no contexto do capitalismo.
No primeiro capítulo, a
autora aborda o advento da psicanálise e investiga o modo como as
ideias freudianas invadiram aos poucos os mundos corporativo e
social, transformando as relações. Afirma ainda que o feminismo,
fortalecendo-se com os postulados da psicologia, foi igualmente
responsável pelas transformações que vieram a ocorrer tanto na
esfera privada quanto na pública.
O tema é aprofundado no
capítulo dois, em que Illouz dirige o olhar para o indivíduo e seu
convívio amoroso e familiar, analisa as estratégias de
autorrealização e manutenção dos laços, muitas vezes,
graças a interesses materiais e ideais de certos grupos
(profissionais, clínicas, indústria farmacêutica, programas de TV,
etc).
Finalmente, no último
trecho, intitulado sugestivamente de “Redes românticas”, o foco
é o campo do envolvimento virtual entre as pessoas, da
mercantilização e da textualização do afeto (sua transformação
em linguagem pura), capazes de anular o corpo, pressuposto
fundamental para o sentimento amoroso.
A citação abaixo dá uma
ideia do quanto os estudos de Eva Illouz podem alimentar a criação
de personagens e relações interpessoais:
..."a
cultura do consumo e a indústria da moda desempenharam um papel
importante, ao acentuarem o manejo deliberado do eu e a criação de
impressões programadas para agradar e seduzir outras pessoas. Isso
marcou uma mudança significativa em relação ao eu do século XIX,
que era menos fragmentado e menos dado a manipulações dependentes
do contexto, porque era moldado por uma ideia holística do caráter”.
p. 115
Para a autora, no chamado
“capitalismo afetivo”, afeto e economia interferem-se mutuamente,
moldando-se um ao outro, a ponto da vida afetiva seguir “a lógica
das relações econômicas e da troca”. E quando a linguagem da
psicologia se entrelaça aos repertórios do mercado, “os dois
oferecem novas técnicas e sentido para cunhar novas formas de
sociabilidade” – farto material de pesquisa para o teatro
contemporâneo.
Adélia Nicolete