quinta-feira, 25 de julho de 2013

Meu encontro com Dionísio no Tabernáculo do Brooklyn



Desde que começamos a fazer teatro, ouvimos que ele nasceu dos rituais primitivos e que, com o tempo, muitos dos elementos originais foram se perdendo. Os deuses agrários foram substituídos por mitos ligados à pólis; a procissão comunitária, acompanhada de canto e dança foi reduzida a coro e atores; a celebração, antes compartilhada por todos, deu lugar ao espetáculo (algo a ser visto). 

A partir do teatro burguês, o distanciamento entre a cena e o público cresceu a tal ponto, que se tornou mais fácil encontrar a representação teatral ligada ao rito na missa e nos cultos do que propriamente no teatro.

O teatro contemporâneo vem, aos poucos, propondo a retomada do caráter de comunhão, de celebração e de cerimônia compartilhada com o público que, de audiência, passa a participante. O termo espetáculo é substituído por evento, experiência ou acontecimento, dado que não é para ser visto apenas, mas para ser vivido, experienciado. Dessa forma, teatro e ritual retomam os laços originais ao mesmo tempo em que são relembrados os laços comunitários.


Teatro da Vertigem - O  livro de Jó
(Foto: João Caldas)
Nesse espetáculo, que ocupou diversos ambientes de um hospital (nessa foto, Hospital Umberto I, em SP, capital), o público acompanhava a trajetória de Jó, o herói bíblico, desde suas provações primeiras - situadas no hall de entrada -, até a manifestação final da divindade, ocorrida no centro cirúrgico, num dos andares superiores.



Vivi recentemente uma experiência desse tipo: teatro e ritual religados, comunidade estabelecida, arrebatamento, celebração. Mas foi em uma igreja, o Tabernáculo do Brooklyn, em Nova Iorque. Não por coincidência, na celebração da Páscoa cristã.



Dionísio - deus do teatro
Filho bastardo de Zeus, o senhor do Olimpo, teve dois nascimentos.
O primeiro Dionísio, chamado Zagreu, filho de Perséfone, foi perseguido, morto e dilacerado pelos titãs, a mando de Hera. Seu coração, ainda vivo, foi engolido por Zeus, que fecundou a mortal Sêmele.
A segunda gestação foi completada na coxa de Zeus, dada a morte prematura da gestante.
Uma das vertentes do mito registra que Dionísio foi criado pelos sátiros, às escondidas de Hera. Com eles teria aprendido o cultivo da uva e a fabricação do vinho - bebida a ele atribuída.
É dos rituais em honra a esse deus, em especial na região da Grécia antiga, que se atribui a origem do teatro ocidental.




À semelhança de Dionísio, Cristo também teve um nascimento milagroso. Filho de Deus com uma mortal, foi perseguido, crucificado, morto e, três dias após o seu sepultamento no ventre da terra, teve proclamada a sua ressurreição.
O sacrifício a que foi submetido é periodicamente relembrado e reencenado simbolicamente por meio do pão (seu corpo) e do vinho (seu sangue).



O coro presente no teatro grego (aqui proposto por Woody Allen em seu filme Poderosa Afrodite), remontava ao primitivo coro de sátiros (homens-bode), responsável por levar a imagem de Dionísio pela comunidade até o altar. Seus cantos e poemas em honra ao deus, aliados a outros elementos, teriam dado origem à tragédia.


(Foto: internet)
Coro cristão do Tabernáculo do Brooklyn, de caráter não denominacional, cuja performance é famosa em todo o mundo.
Seus cantos de louvor abrem e fecham a cerimônia, sendo retomados ao longo do ritual.
Neles são narrados a vida de Cristo, solicitados seus favores e celebrada sua vitória sobre a morte, como pode ser visto nos links abaixo:






Anfiteatro Herodes Ático - Atenas - modelo de teatro romano
(Foto: internet)


Tabernáculo do Brooklyn - Nova Iorque
Arquitetura totalmente baseada no espaço teatral, com divisão clara entre cena, orquestra, área para os convidados ilustres e celebrantes, área para o público.
(Foto: internet)


Dois pavimentos destinados ao público.
(Foto: internet)


O público fica à vontade para participar durante a evolução do coro.
Pode-se cantar, dançar, manifestar-se em voz alta,  ocupar todo o espaço. São momentos reservados ao coletivo.
Há turistas de todo o mundo que talvez, mais do que prestigiar um culto cristão, vai até lá para participar de um encontro com o sagrado em uma atmosfera de festa e reflexão.
(Foto: internet)


Ao centro, prédio do Brooklyn Tabernacle
Momentos antes de cada celebração, vários fiéis ficam encarregados de recepcionar amistosamente os visitantes e orientá-los pelo local. Estão todos vestidos com suas melhores roupas (roupa de formatura, como se diz) e é notável a alegria do encontro realizado a cada semana.
Uma atmosfera de acolhimento é criada desde a saída do metrô!
(Foto: Adélia Nicolete)



O pastor-corifeu Jim Cymbala conduz o culto 
(Foto: internet)
Bom roteiro, oportuno; boa argumentação.
O pastor é o porta-voz do deus. Julga-se tomado/inspirado por ele. Não é, portanto, aborrecido ou entediante. Há uma preocupação com os gestos, a entonação e a modalização da voz em busca de efeitos emocionais no público.
Há toda uma performance, enfim, que alia à solenidade necessária ao culto a bondade e a simpatia que todos buscam no pai.




O sacrifício de um animal (em geral um bode), em honra a Dionísio e o cordeiro imolado como símbolo de Cristo, são substituídos pelo envelope de contribuição. Nele, o sacrifício em dinheiro vem acompanhado do nome da pessoa (opcional) e o benefício alcançado ou solicitado.
(Foto: internet)



Ao final da cerimônia, um tempo para avisos da comunidade, para a divulgação do site, do almoço comunitário e das festas promovidas para os jovens. 
Por último, a distribuição de filipetas do espetáculo teatral que será realizado ao meio dia, ali mesmo no templo/teatro. Em cartaz: "A estória do amor - inspirada na sagrada família". 

Independente do credo ou da posição que sem com relação aos cultos religiosos atuais, é inegável o efeito transformador desse tipo de evento. Mais do que a fé e as estratégias desenvolvidas para sua potencialização, o que mobiliza a todos no ritual é o encontro comunitário e o estabelecimento de uma zona de confiança e identificação com um mesmo objetivo.
Por uma hora e meia aquela nave cumpre uma rota fora do dia-a-dia. Cria-se um intervalo de tempo e espaço, situação em que tudo funciona em outro ritmo e segundo princípios diversos. Concluída a travessia, saímos outros também, transformados, renovados, especialmente pelo contato com o belo.
Não seria essa uma das tantas características do teatro e da arte? 





Adélia Nicolete


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