quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O príncipe real - por Elaine Perli Bombicini



(Beatriz Milhazes - O magico - 2001 188 x 298 cm)


_ (suspirando e liberando sua forte voz) Talvez o que eu tenha semeado, não brote agora. O céu está escuro, escuro e com isso sem o calor que é necessário, as pequenas sementes se encolhem bem apertadinhas, só com muito calor algo se modifica.
_ Fazer uma fogueira? (risada gostosa) Não, não funcionaria. O calor deve brotar de dentro, sabe? Assim meio no natural, com suavidade. Nem pensar em algo artificial, não daria certo.
_ Poderia, poderia sim aquecer alguns litros de água para aconchegar, mas com isso apenas e tão somente estaríamos engordando as sementes, inchando seus corpinhos miúdos e com isso elas perderiam a força para romper suas cascas. Não é aconselhado. Naturalmente é a palavra.
No início essa palavra era o verbo, depois o verbo foi ficando mais propenso a escatologia e rimos muito com isso, porque taramelavam sem parar, inclusive palavras de baixo calão. Mas agora é mais tranqüilo, há tempo para completar o processo e nesse tempo o que brotará, já traz em si um pouco do antigo e do antigo, o silêncio.
_ Sim, nutrir, esse é um passo acertado. Acarinhar, nutrir, conversar com cada pedacinho (gesticulando com a mão), com cada célula. Isso ajuda. Aliás só esse é o caminho, formação.
Fico olhando esse horizonte mínimo e esperando que algo toque o sino, porque ai desperta do silêncio e vai a tona para olhar para o sol. Finalmente brotará.
_ Mas não tenha dúvida, nessa hora é o mais bonito de ver. Os raios de sol se dobram e abrem-se como uma flor de bronze, para receber o novo integrante. Veremos o que vai acontecer, é só acompanhar de pertinho. Isso nós podemos fazer.
_ não! Não! Não! Esse aqui já tem endereço certo, terá castelo de vidro de dois andares, muita gente para servi-lo, mas também será um grande servidor.
_ Mas é claro que terá dom para as artes! Na música será reconhecido. Terá inspirações grandiosas. Nem tudo serão flores, deverá aprender com o simples e com as coisas complexas, será inteligente também. Mas para isso temos que fazer o nosso melhor. Concentração por favor!
_ Vamos lá, comigo, regando, isso, assim mesmo (pausa) regue com luzes do arco íris e com as grandes gotas prateadas, agora aos poucos, dilua, isso mesmo! Não encharque muito, isso, delicadamente. O aroma deverá estar para aproximar e não para afastar. Secando no vento, que maravilha! (pausa)
_ Prontinho!! Seco e brilhante. Agora essa idéia está pronta e é só o tempo dos pais dele se conhecerem e ele nascerá num lindo dia de primavera.
_ Não, você não pode ir junto! Não mesmo. (boas risadas)
Afinal a realeza tem que ter uma certa privacidade.
_ freezer com granizo? Não, não necessita de refrigeração, para guardar é só afofar na caixa com a seda azul e apagar a luz. ok?
Caros ouvintes e telespectadores, o nosso obrigado pela audiência tão numerosa e amanhã demonstraremos como criar frutas sem caroço. Não percam. E com vocês os nossos comerciais.
(Som de cítaras ao entrar o comercial de Nuvens em pó).




(Texto de fantasia criado por Elaine Perli Bombicini, inspirado em tela homônima de Beatriz Milhazes)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O príncipe real - por Adriano Galego Geraldo



(Beatriz Milhazes, O selvagem, 1999, 189 x 249 cm)

I
Onde não é o principio da realidade

Foco acende lentamente. Uma jovem vestida de branco surge à procura de algo.

Helena – Bom dia! Bom dia! Bom dia?(Procura algo) Bom...? (Para a plateia) Meu nome é Helena, vivo aqui neste jardim há não sei quanto tempo. (desenrola uma tapeçaria de flores) Estava procurando a Voz sem Corpo, ela vem todos os dias. Ela me ensina sobre todas as coisas e me conta histórias de como eu nasci. A Voz me ensinou a ler e a escrever e me ensina como devo ser. Ela me disse que tenho sete anos, um dia, me contou que nasci da casca de uma árvore, outro de uma flor pequenininha, ontem disse que surgi da sombra de uma nuvem. Disse que meu nome é Helena e é assim que me chamo. (Sorri) Voz sem Corpo? Voz sem Corpo?(Procura o amigo)

Voz sem Corpo (Fora de cena) – Bom dia, Helena! Como você está feliz esta manhã! Aposto que quer que te conte outra, não é mesmo?

Helena – Eu quero sim. Eu adoro suas histórias, Voz sem Corpo!

Voz sem Corpo – São suas histórias, Helena, não minhas. Agora escuta, vou te contar sobre o vento, é preciso saber ouvir o sussurrar dele em seus ouvidos, (Helena faz gesto de escutar) saber ver sua presença pela copa das árvores (Helena balança os braços como se fosse uma árvore ao vento) e saber que é preciso vestir uma pele para que se possa sentir,(Helena toca a própria pele) e a pele é a morada do corpo.

Helena – Mas então... Voz sem Corpo... Você...

Voz sem Corpo – Sim, Helena... Não posso sentir o vento, alguns de nós somos feitos por pedaços, seria uma grande alegria se pudéssemos juntar todas as partes e sermos um só! Seria um milagre! Mas somos muitos mundos, Helena! (Helena entristece) Você quer um presente? (A Voz tenta animar Helena, a menina acena “sim” com a cabeça) Então está decidido!

Barulho de vento, música, surge serpenteando no ar um lindo lenço dourado. Helena o pega brinca e dança com ele por algum tempo.

Helena – Que lindo! É lindo! Adorei o presente!

Voz sem Corpo – Ele é um lenço mágico, com ele é possível andar sobre as águas sem jamais afundar, proteger-se do frio, do fogo e da chuva e, de qualquer material cortante como a espada de um cavaleiro, por exemplo! Agora, para ficar com ele você vai precisar me prometer duas coisas. Você quer ficar com ele?

Helena – Sim! Eu quero! Quero sim!

Voz sem corpo – Ótimo! Olhe ali em seu jardim. Está vendo a caixinha florida? (A menina corre para pegá-la) Ela é um relicário, ela guarda segredos muito importantes e uma relíquia raríssima, mas nunca, em hipótese alguma, você poderá abrir essa caixa! (Helena se assusta já que estava prestes a espiar o que tinha dentro)

Helena – Como? Eu não entendo.

Voz sem Corpo – Não posso revelar mais, a segunda coisa que deve me prometer é que nunca sairá dos limites do jardim.

Helena – Mas por quê?

Voz sem Corpo – Além do jardim há o Labirinto Sombrio formado pela árvores e plantas da floresta e dele, até hoje, ninguém conseguiu escapar. Você promete? (A menina olha o lenço dourado)

Helena – Sim, prometo!

Voz sem Corpo – Ótimo! Agora devo partir, terei que fazer uma longa viagem e ficarei longe alguns dias. Não se esqueça do que me prometeu, Helena, e divirta-se com seu lindo lenço dourado. (A Voz desaparece com uma gostosa risada)

Helena – Voz sem Corpo? Voz sem Corpo? (Não há resposta, a menina dá de ombros e continua a brincar com seu novo presente. As luzes se apagam.)

II
Um novo amigo. Será?

Foco acende lentamente. Helena desperta. Ela procura alguém.

Helena – Ahhhhhhhhhhhhhhh! Bom dia! Bom dia! Bom dia? Bom dia Voz sem...

A menina lembra-se do dia anterior. Desiste de procurar o amigo e começa a brincar com o lenço dourado. Cansa da brincadeira. Começa a brincar com os limites do tapete-jardim, equilibra-se, arrisca a ponta do pé, etc. Cansa da Brincadeira.

Helena – Tudo é tão chato. Não gosto de ser só, quando a Voz sem Corpo não aparece me sinto tão sozinha. (Vira-se e olha para caixa. Corre até ela.) É linda a minha caixinha, toda enfeitada com círculos de flores, como a Voz disse que era o nome? RE-LI-CÁ-RIO... (Soletra brincando com os sons) e essa flor no meio deve ser a chave.

A menina acaricia a caixa. Helena para e olha para a plateia. Ela abre.

Helena – Um colarzinho de miçangas, um perfuminho... hum... cheiro de lavanda, um pandeirinho, incensos, óleo... urgh... Que nojo. (Cheira) Uma agulha... ai, parece tão pontiaguda. Hum... O que tem mais aqui dentro? Parece um diário!

Larga tudo e começa a ler. Música. A menina levanta no ritmo da música e sai, volta com uma carriolinha (pode ser um pequeno vaso), nela coloca um pouco de terra. Age como se fosse fazer uma feitiçaria. Às vezes consulta o diário. Começa a montar um tipo de jardim: planta flores e instala os incensos, acende-os, derrama o óleo, enfeita-o com uma coroa de flores, pega o pandeiro e começa rodopiar em volta do estranho objeto. Música para. Ela cansa e para também. Senta e observa. Fica impaciente.

Helena – Que chato! Não aconteceu nada! (Helena levanta e sai com a carriola ou vaso)

Dá de ombros e vai se sentar do outro lado brincado com sua caixinha. Um ser de barro com uma coroa de flores na cabeça surge e vai lentamente em direção de Helena.

Helena – AAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH... Quem é você? O que você quer? Você quer me fazer mal? (O ser de barro anda lentamente em direção da menina que permanece estática. Ele arranca uma flor pendurada em seu próprio corpo e prende-a em seu vestido. A menina se acalma.)

Helena – Você quer me fazer mal?

O ser de barro acena em negativa para ela.

Helena – Quem é você? Qual é o seu nome?

Silêncio.

Helena – Você não tem nome?

O ser de barro acena mais uma vez em negativa.

Helena – Você não fala?

Acena outra negativa.

Helena – De onde você veio?

Ele aponta na direção onde Helena tinha feito a mágica.

Helena – Eu fiz você?

O ser de barro acena sim com a cabeça.
Voz sem Corpo retorna, seu chamado vem num crescente.

Voz sem Corpo – Helena? Helena? Onde você está? Não sabe as histórias que tenho para contar! Onde você está? (A menina tenta esconder inutilmente o ser de barro) Helena! (Voz sem corpo, aflito) Não, Helena, você abriu a caixa!

Helena – Foi... Foi sem querer...

Voz sem Corpo – Mas você prometeu!

Helena – Por favor, Voz sem Corpo me perdoa? Eu juro que eu concerto tudo! Eu juro que eu desfaço o encanto!

Voz sem Corpo (Com pesar) – Ah, Helena, agora não tem mais jeito... É impossível desfazer, seria perigoso demais e você teria que pagar com sua própria vida.

Helena – O que? Mas o que eu faço agora?

Voz sem Corpo – Agora? Agora você será responsável por ele. Terá que cuidar dele com todo o cuidado.

Helena – Eu cuido! Juro que cuido dele! (Esperançosa)

Voz sem Corpo – Então você decidiu! Cuidará dele! Mas lembre-se, ele ainda é mais barro que humano, não aprendeu a desejar, nem aprendeu o que é a dúvida. Ele te amará completamente, ele não dormirá nunca, nunca lhe questionará e nunca vai deixar de estar ao seu lado. Você entendeu?

Helena – Vai ser maravilhoso! Se for assim quero ficar com ele para sempre! Você quer ser meu amigo? (Para o ser de barro)

O ser de barro acena sim com a cabeça.

Helena – Ai que bom! Tenho tanta coisa para te contar! Vamos, quero te mostrar meu jardim! (Pega na mão dele e começa a sair de cena) Precisamos te dar um nome, hum... que tal Barrento? Acho legal!

Ele acena sim com a cabeça.

Helena – Ai, não... não... Barrento é muito... muito... pegajoso. Que tal... Cara de Terra? É um nome forte, eu gostei! E você?

Ele acena sim com a cabeça.

Helena – Ai, não... não... Cara de terra é muito... muito duro. Que tal... que tal... que tal... Bolinho de Terra?

Ele acena sim com a cabeça.

Helena – Isso, Bolinho de Terra! Igual quando brincava de comidinha no jardim! Bolinho é tão... tão... doce! Isso! Bolinho de Terra! Vem vou te mostrar onde moro, é lindo, você vai ver! Vamos, nossa, mas como você é lento hein! Vamos Bolinho... (Saem)

Voz sem Corpo – Pobre Helena! Foi feliz até agora em seu pequeno jardim. (Suspira com pesar) Agora terá que aprender o que é a tristeza.
...

(Texto de fantasia criado por Adriano Galego Geraldo e inspirado em tela homônima de Beatriz Milhazes)