quarta-feira, 31 de março de 2010

Forma e conteúdo



Bárbara do Amaral concluiu seu comentário do post anterior com as seguintes frases: “Sou a favor da comunicação com responsabilidade, com estudo, madura e sabendo que sua função principal é fazer que a mensagem seja compreendida. Já a inovação é a "forma" e penso que deve ficar em segundo plano.”
Me atenho à frase final e pego carona em Peter Szondi (1929-1971) para dar continuidade às nossas reflexões sobre dramaturgia contemporânea.

Em seu livro “Teoria do drama moderno” Szondi (foto) identifica e comenta o processo de avanço do elemento épico na forma dramática. Para isso aborda aspectos da obra de diversos dramaturgos, traçando um quadro de certa porção do teatro ocidental que vai do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) ao americano Arthur Miller (1915-2005). A forma dramática consistia, grosso modo, na reprodução das interrelações humanas (diálogos), presentificadas pelo artista, preferencialmente na “caixa preta” do palco, diante do público, mas alheias a ele, e ignorantes também de um autor. Essa forma foi sendo invadida aos poucos, mas irreversivelmente, pelos elementos épicos, ou seja, por elementos que remetiam à sua ficção, que se contrapunham à sua ilusão de realidade: flash backs, saltos no tempo, lirismo, paralelismo de discurso, silêncios, placas, filmes, apartes.
Segundo o autor esse avanço do épico, que provocou uma “crise” no drama fechado em si mesmo, ocorria na medida em que os conteúdos emergentes na sociedade do período entravam em contradição com a forma dramática, na qual não encontravam mais correspondência.

O filósofo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969) usou um conceito da química para tratar do tema em arte: devemos compreender a forma como conteúdo precipitado. Ao lembrarmos que “precipitado” é um sólido que se forma e se deposita a partir de uma solução líquida, identificamos o caráter sólido da forma e sua origem no conteúdo, a inter-relação de ambos. Então quando Bárbara, refletindo sobre a dramaturgia contemporânea, diz que, na sua opinião, a inovação é a "forma" e que, por isso, deve ficar em segundo plano, talvez possamos alimentar nossa discussão com outras questões.

- O que nos motiva a escrever? Uma ideia? Um assunto? Uma imagem? Uma história? Ou uma forma?
- Decidido ou intuído o assunto, a história, como se dá a escolha da forma? É realmente uma escolha? Ou a ideia já nasce formatada na cabeça? Como o conteúdo escolhido interfere no formato do texto? Ou como o formato molda ou determina o conteúdo?
- Sobre o que queremos falar? Sobre o que é importante falar hoje? Qual a melhor forma de expressar e comunicar esse conteúdo?
- Por que, para que e para quem fazemos teatro?

domingo, 28 de março de 2010

Provocação



Mário de Andrade, em seu "Aspectos da literatura brasileira" – reunião de ensaios publicada em 1943 – faz um comentário no texto "A poesia em 1930" que achei oportuno transcrever aqui para provocar alguma reflexão em torno do tema do nosso cilo de estudos.
O autor principia falando sobre quatro poetas publicados naquele ano e ressalta os benefícios que a maturidade trouxe à sua poesia. No segundo parágrafo ele avalia:

“Essa me parece uma das lições literárias do ano. Quatro livros de poetas na força do homem. Acabaram as inconveniências da aurora. A poesia brasileira muito que tem sofrido destas inconveniências, principalmente a contemporânea, em que a licença de não metrificar botou muita gente imaginando que ninguém carece de ter ritmo mais e basta ajuntar frases fantasiosamente enfileiradas pra fazer verso-livre. Os moços se aproveitaram dessa facilidade aparente, que de fato era uma dificuldade a mais, pois, desprovido o poema dos encantos exteriores de metro e rima, ficava apenas... o talento. E já espanta, um bocado dolorosamente, esse monturinho sapeca de livros de moços, coisa inútil, rostos mais ou menos corados, excessiva promessa, resumindo: bambochata que não resiste à primeira varredura do tempo”.

Gostaria de continuar a transcrição, pois ele aprofunda o “mal humano” que é a poesia e aconselha os jovens sobre como canalizar suas atividades e se desviarem da publicação de material imaturo. Quero porém me ater ao trecho acima e, ainda que brevemente, iniciar um paralelo com nossas inquietações acerca da dramaturgia contemporânea.

- Será que muitos de nós, dramaturgos, não confundimos dramaturgia contemporânea com o abandono puro e simples de elementos dramáticos? Com a despreocupação com a comunicação e com a relação artista-público?
- Será que muitos dos exercícios que temos presenciado não se mostram ainda pura expressão, puro conceito? Puro “ajuntamento” ou “enfileiramento” de frases, emitidos por figuras designadas por letras, números ou hífens?
- A transgressão da forma dramática não terá sido, para muitos, uma cilada, com sua aparente facilidade?

Creio que os “encantos exteriores” do drama precisam ser superados, mas, para isso, é preciso também que sejam descobertos/alcançados outros encantos, tão poderosos quanto, para que se firme a nova dramaturgia. Enquanto isso não acontece, a alma da maioria dos espectadores ainda vai encontrar abrigo ou diversão nas boas e velhas formas dramáticas.

Nossas reflexões não param por aqui.

A Modernidade no romance



Como, nesse momento, estudamos a pós-modernidade, aqui vai um aperitivo. Trata-se de um trecho de obra do Modernismo, pra gente identificar algumas raízes, alguns prenúncios do que vivemos hoje.

Em 1925, no Brasil, Oswald de Andrade lançava o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Na Inglaterra (que os nossos modernistas queriam ver devorada e metabolizada) Virginia Woolf publicava Mrs. Dalloway, um livro que iria revolucionar a forma de se escreverem romances. Ao lermos essa obra - que relata de forma primorosa um dia na vida de Clarissa Dalloway - e algumas outras da autora, percebemos claramente sua influência em nossas Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector.

Aqui vai o trecho vertigem, encontrado logo na segunda página:

"Tendo vivido em Westminster - há quantos anos agora? mais de vinte -, sente-se, até no meio do tráfego, ou quando se desperta à noite, Clarissa bem o sabia, um particular silêncio, ou solenidade; uma indescritível pausa; aquela suspensão (ou seria do seu coração, que diziam afetado pela influenza?) antes que batesse o Big Ben. Agora! Já vibrava. Primeiro um aviso, musical; depois a hora, irrevogável. Os pesados círculos dissolviam-se no ar. Que loucos somos, pensava ela, atravessando Victoria Street. Só Deus sabe como se ama a isso, como se considera a isso, compondo-o sempre, construindo-o sempre em torno de nós, derribando-o, criando-o de novo, a cada instante; até as última mendigas, as mais baixas misérias dos portais (bebem a sua ruína) faziam o mesmo; impossível, ela o sabia, impossível salvá-las com leis parlamentares, por esta simples razão: amava a vida. Nos olhos dos passantes, na sua pressa, no seu andar, na sua demora; no burburinho e vozearia; carros, autos, ônibus, caminhões, homens-sanduíches bamboleantes e tardos; charangas; realejos; na glória e no rumor e no estranho aerocanto de algum avião sobre a sua cabeça, estava isto, que ela amava: a vida, Londres; aquele momento de junho."



(Tradução de Mário Quintana)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Papel fere pedra




Era preciso escolher um título, um nome. Porque as coisas, os seres, é pelo nome que são.
Espécie de Adão (a quem foi dado o privilégio de preencher todos os rótulos e crachás primeiros) me vi diante do blog em branco e da ordem expressa de batizá-lo.
Convidei, então, Heiner Müller para padrinho, padroeiro e santo de cabeça. São dele o nome e o sobrenome do nosso blog:

PAPEL FERE PEDRA

último verso do seu poema dramático "Sísifo".

Mesmo sendo o papel não mais papel, mas tela, que seu papel simbólico de ferir a pedra concreta, gigante, quase intransponível das circunstâncias permaneça claro diante e dentro de nós.