segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O príncipe real - por Solange Dias


(Beatriz Milhazes - Bea -  1993, acrílica sobre tela, 110 x 130cm)



A velha Beatriz olha por um longo tempo um longo tecido branco que está em suas mãos. Está sentada na varanda da grande casa velha, flores murchas, ar seco, céu cinza. De um lado, um grande cesto cheinho de linhas coloridas, de tantos tamanhos e formas. Do outro, uma cadeira velha, vazia.

Pega o primeiro bolo de linha ao acaso. Vem o azul. E Beatriz vai bordando então com seus dedos enrugados grandes círculos, círculos infinitos. Círculos de flores, pequenas, grandes, como grandes e pequenos colares de contas de flores. Flores azuis. Pensa nos miolinhos das flores. Pega a linha rosa. Borda então miolinhos rosas nas flores azuis. E no mesmo instante, em uma brisa de vento suave, pequenas flores suspensas em forma de contas vão brotando no umbral da porta, nos parapeitos da varanda, nos vãos das janelas, nos rodapés... Brotam jardins suspensos, muitos mundos, círculos infinitos.

Beatriz borda então flores amarelas e verdes, e infinitas contas de flores amarelas e verdes vão cobrindo as paredes enegrecidas da velha casa. E o chão cheio de poeira vai se tornando um grande tapete de flores enfeitado. E o ar começa a ter um cheirinho doce de alfazema.

Beatriz borda um céu lilás e um grande sol amarelo e imediatamente o dia nublado se ensolara em nuvens tão delicadamente lilases com um sol forte e amarelo que a cor do dia é uma mistura de dia e noite em um infinito.

Beatriz pensa então em bordar em meio há tantas flores, uma jovem que borda sentada em uma cadeira em uma varanda. Pensa em começar pelo vestido. Lembra de um que teve um dia: branquinho, até o joelho, mas que tinha dois peixinhos bordados, um vermelho e outro azul no barreado. Começa a bordar e imediatamente seu vestido puído e desgastado se transforma em um lindo vestido branco com dois peixinhos coloridos.

Beatriz continua bordando e seus pés se tornam macios e branquinhos, como seu vestido, e neles, pequenas sandálias cheinhas de miçangas em cor púrpura vão surgindo. Suas mãos vão ficando mais ágeis, pois acabara de bordar as mãos delicadas da jovem. E de seus braços, vão desaparecendo as manchas de tantos sóis que teve em sua vida, e de seu colo, vão desaparecendo os sulcos vazios da pele enrugada de tantas noites dormidas encolhida, se enrolando em si mesma. E seu rosto chupado, murcho, vai dando lugar a outro rosto: pele clara, cor da luz da lua. Os vincos, os traços tristes vão desaparecendo um a um como rios que secam e se transformam em campina branca, branquinha.

Beatriz borda e seus cabelos brancos se enegrecem, os fios de repente crescem por sobre os ombros e então borda também uma linda grinalda de pequeninas flores de laranjeira. No mesmo instante nascem uma a uma, pequeninas flores enraizadas em seus cabelos em um círculo sem fim.

E, bordando, Beatriz percebe ao seu lado, naquela cadeira vazia, que vai surgindo um jovem que veio do tempo antigo, alguém que ficou por tantos anos esquecido e que agora retorna corpo forte, sorriso conhecido. E num eterno beijo, Beatriz borda em volta do casal, mais e mais colarzinhos de flores, envolvendo os dois num grande abraço que fica parado no tempo, que fica suspenso no ar.



(Texto de fantasia criado por Solange Dias e inspirado em tela homônima de Beatriz Milhazes)






terça-feira, 23 de novembro de 2010

O príncipe real - análise de obra



(Beatriz Milhazes, O principe real, 1996, acrílica sobre tela, 
196 x 196 cm)


Consideramos o potencial de fantasia desta obra de Beatriz Milhazes para orientar as novas propostas de texto do Ateliê.
Na análise que precede a escrita e que a orienta, destacamos:



Cheiro de Nescau, de doce, de erva doce ou capim cidreira.
Gosto de festa de criança, com bolo, cereja, refrigerante, balas coloridas.
Gosto de bala de canela ou de gengibre.
Bolo e aniversário ou casamento visto de cima.


Remete a uma loja de perfumes, com aromas variados. Incenso, violeta ou lavanda, leite de rosas.
Um tom antigo, retrô.
Muita cor viva e alegre. Plano de fundo romântico.


Traz o som de música marcada por pandeiro. Pessoas cantando em festa caseira. Ritmo, às vezes descompassado, às vezes chato ou cansativo.
Batizado. Presente escondido. 
Toca, esconderijo. Espiral. Medo infantil.


Cânticos. 
Música indiana, psicodélica, woodstock. Cirandas, caixinha de música.
Dança cósmica.
Engrenagem. Relógio de pulso. Falsa alegria.


Toalha de mesa.
Fumaça. tapeçaria.
Terapias orientais, massagem, óleo e água.
Toalhinha de crochê da avó.
Velhice, asilo.


Flores supensas. Úteros, óvulos, filhos. Centro.
O centro é marca de batom.
Chakras, coração.
Único universo. Dois mundos. Vários mundos.


Jardins. Jardim real. Sol.
Muitos s (plurais)
Colarezinhos de contas - cada conta uma história.
Florzinhas do vestido da avó quando menina. Enfeite de vestido de menina. Enfeite de cabelo.
Pétalas. 
Princesa.
Mãe.
Feminilidade, feminino.
Uma louca que costura.
Bordado, teia. Rosa e azul.
Coroa de flores - grinalda.
Labirintos.
Luas.
Círculo - sem começo e sem fim.
Os círculos vão se fechando.





quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Beatriz Milhazes - Fantasia



O ateliê parte para a apreciação e utilização da obra de outro artista. 
Desta vez a escolhida foi a carioca Beatriz Milhazes, dando continuidade à nossa opção por artistas brasileiros.


(Beatriz Milhazes Serpentina, 2003, gravura edição 40, 129,5 x 129,5 cm)

Nascida em 1960, Beatriz frequentou cursos de artes no Brasil e no exterior e atualmente trabalha como pintora, ilustradora, cenógrafa e professora.



(Beatriz Milhazes, Cenografia do espetáculo Tempo de verão, 2004, Marcia Milhazes Cia de Dança)

A maior parte de seus trabalhos é em acrílica sobre tela, num processo lento, que pode durar meses. Tal processo, muitas vezes, pode se assemelhar ao da escrita: esboços, camadas diversas, sobreposições, ajustes constantes até o acabamento. 


(Beatriz Milhazes - O sonho de José, 2003/2004,  250 x 250 cm)


Elaine Perli Bombicini, participante do ateliê,  comenta a respeito da artista:


"O que gosto em Beatriz é a conexão com os anos 70 (quando comecei a me interessar por arte, embora só a tenha conhecido muito depois), algo dos encaixes perfeitos que a alma barroca possui e algo de um efeito que vai de encontro a arte deco. Essa multifaceta que ela apresenta, amplia demais as possibilidades de análise e aprofundamento em sua obra. Estar diante de um quadro dela é viajar, nos mínimos e nos máximos detalhes, a profusão de cores e em alguns trabalhos a transparencia, nos lembram vitrais.
Possui obras de grandes dimensões, nos transmitindo a sensação de ter tido muito trabalho. Assim como ilustrações de livros que são pequenas obras de arte (mil e uma noites, se não me engano).
Estar em contato com sua obra é sentir uma certa alegria espontanea. Gera movimento!"


A  escolha de Beatriz Milhazes como nossa próxima referência vem atender à proposta de criação de um texto de fantasia, que poderá ser conferido nas próximas postagens.


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Mariana Martins e sua coleção de diplomas falsos







Em época de final de processo, estamos todos em busca de um certificado, de um diploma - mesmo que seja falso!


Comentamos ontem em sala a coleção recém lançada da artista plástica Mariana Martins (foto). Trata-se arte feita com materiais desprezados, mas cuidadosamente guardados e colecionados por ela, como preciosidades: rótulos, decalques, embalagens, canhotos de bilhete aéreo, selos usados, toalhinhas plásticas, anúncios.






Mariana é filha do artista plástico Aldemir Martins, cearense que adotou São Paulo para viver, mas cultivou em sua obra as referências de sua terra.




A coleção de diplomas falsos começou, segundo a artista, por uma brincadeira. Há muitos anos, alguns de seus amigos lamentavam não ter um diploma universitário como Mariana, formada em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Esses lamentos deram a ela a ideia de providenciar diplomas para que os amigos pudessem ostentar em suas paredes.





Outros trabalhos com a mesma proposta podem ser visualizados no link abaixo, no site da galeria Choque Cultural, de propriedade de Mariana Martins e que é dedicado, principalmente, a jovens artistas:


http://www.choquecultural.com.br/?area=bio&aid=31

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A liga - por Elaine P. Bombicini



Arte feita por crianças, a partir de apreciação de obras de Sandra Cinto. Fonte:




(Num espaço público)

A. Credo, o que houve com essa menina. Peraí que te dou uma mãozinha...

B. Bolhas de sabaãão ao. (Engasgada) Deus, ai vem outro (ruído intenso de jorro). Vomitei muito...aff

A. Muito é pouco e pouco é azul. Nunca vi nada igual. Estica um punhado de folhas de papel.

B. O pior é que não passou de brincadeira. Nem bêbada estou... mas acho que foi o fígado.

A. Fígado... o pior dos malestares minha filha. Vamos limpar isso tudo, quase estragou seu vestido, vamos limpar tudo, tudo, tudo, tudo... todos os quadradinhos, cada um de uma cor, e tudo combinado, tão lindo!

B. É patchwork, eu quem fiz, estudo moda sabe? Algo diferente, arrojado (limpando a boca)

A. Na minha terra filha,isso ai é colcha de retalhos! A gente juntava todos os pedaços que sobravam dos panos e costurávamos, mas agora isso é longe ...um passado. Pontinhos bem apertados, juntando nossas historias. Que nem hoje.

B. Ah to tão enjoada, com tanta dor de cabeça; Acho que não tenho nem como voltar pra casa. Poxa você é bem bacana, quem diria que alguém aqui me ajudaria.

A. Limpando o vestido: isso faz parte da vida minha filha. Agora senta e respira fundo, fecha os olhos, vai respirando assim e conta até dez... isso vai ver que tudo ficará melhor.

B. Poxa é verdade...tá passando... Viu tia, muito fofa sua ajuda!
(como que despertando ouve o celular. Abre os olhos e vê tudo vazio ao redor. Atende o celular)

B.  Puta que pariu! Que tinha nisso que você me deu? Cara...nunca mais, to alucinando até agora. Vem me pegar. (desliga)

B. Quadradinhos, pontinhos, alinhavo, como era mesmo a idéia? Azulejos brancos? tinha azul no seu nome? Unindo ou ligando?







(A situação acima foi criada por Elaine Perli Bombicini. Trata-se de uma primeira versão, baseada em nossa apreciação da obra da artista Sandra Cinto, apresentada na postagem "Sem título - obra de referência"..
Outras versões serão escritas a partir de sugestões e análises feitas neste blog pelos colegas e outros interessados)

Catástrofe de natal? - por Andréia Almeida




(Sandra Cinto, título da obra a ser pesquisado)


Rapaz  _ Dona, cuidado!

Dona   _ Ai, desculpa!

Rapaz  _ An! Lá vem outro... (correm) Aqui! Por aqui! Sobe.

Dona   _ Eu? Não dá! Não consigo. (Ele a puxa) Obrigada.
Meu Deus, tava tão bonito, o que foi acontecer? (Ele não escuta e desce se arriscando para salvar sua mochila. A multidão que antes apreciava o presépio ouvindo as calmas músicas natalinas agora pisoteia tudo, o material escolar do estudante duro e os meninos que não são Jesus.) Menino! Cuidado! Gente... cuidado com o menino! (Ela o puxa)

Rapaz  _ Obrigado!? Nossa... O negócio ta feio.

Dona   _  Como sair daqui? Como voltar para casa?

Rapaz  _ Nossa... não voltar. Que bom. Uma desculpa. Prá não voltar para aquele inferno. O inferno daqui me impede. To começando a gostar...

Dona   _ Tá louco? Irresponsável! Não vê o que ta acontecendo? Uma catástrofe! (sem tirar os olhos das explosões) Isso numa época tão linda como esta? Isso num país tão abençoado como este?

Rapaz  _ (sem tirar os olhos das explosões) País abençoado só se foi na tua época. Catástrofe maior tá minha vida. (Nova explosão) Aqui pelo menos tem uma emoçãozinha, Zona! Vem mais para cá senão pode cair? (longo silêncio)

Dona   _ Prá mim não, nunca posso sair! Hoje que pude é isso que acontece?!

Rapaz  _ Vai dizer que não é no mínimo diferente? (O olhar foge para onde antes aconteciam as explosões para agora escaparem um do olho do outro. As demais pessoas a fim de salvar suas peles quase os esmagam.)

Dona   _ Mas... tenho minha casa... E a minha família... Que tenho que cuidar...



(A situação acima foi criada pela Andréia Almeida. Trata-se de uma primeira versão, baseada em nossa apreciação da obra da artista Sandra Cinto, apresentada na postagem "Sem título - obra de referência"..
Outras versões serão escritas a partir de sugestões e análises feitas neste blog pelos colegas e outros interessados)

Sorvete de pistache - por Solange Dias



(Sandra Cinto - Instalação "Construção", 2006, desenhos sobre papéis tingidos)


Barulho de máquinas de lavar. Ela carregando um cesto pesado de roupa.
Ele com uma sacolinha. Poucas roupas.

O VELHO - Minha mulher foi embora.

MULHER - Hum!

O VELHO - Filha da puta, ela é quem devia de lavar estas roupas. Não sei usar isto, não!

MULHER - As brancas com as brancas, coloridas com coloridas, bota dentro, aperta o botão e espera.

O VELHO - Sessenta anos de casado... Filha da puta. Sabe o desenho do pica pau? Ele sempre se dá bem mesmo quando se dá mal. Ele é um grande de um sacana.

MULHER - Sei.

O VELHO - Filho da puta. Igual minha mulher. Parecia um anjo... Só parecia... Levei sessenta anos pra descobrir.

MULHER - Acontece.

O VELHO - Você é bem forte, hein? Nem parece mulher. Quando entrei aqui e olhei pra você, pensei: o que faz uma mulher ficar com esses músculos de homem, pra que isto?

MULHER - Paciência.

O VELHO - Pensei que se minha mulher tivesse esses músculos de homem eu enfiava a mão na cara dela.

MULHER - Que bom então que ela foi embora.

O VELHO - Sabe, quando eu tava de bom humor a gente ia numa sorveteira. A gente gostava de tomar aquele sorvete, aquele verde, meio azul, sabe qual é? Aquele de nome esquisito?

MULHER - Pistache.

O VELHO - Este mesmo. Pistache. Filha da puta. Ela tinha que ter ido embora? Olha, tá escorrendo água pelo chão.

MULHER - Hum, hum...



(A situação acima foi criada pela Solange Dias. Trata-se de uma primeira versão, baseada em nossa apreciação da obra da artista Sandra Cinto, apresentada na postagem "Sem título - obra de referência".
Outras versões serão escritas a partir de sugestões e análises feitas neste blog pelos colegas e outros interessados)

Então é natal - por Bárbara do Amaral



(Sandra Cinto - "A ponte impossível", 1998, pintura automotiva sobre madeira e mdf, 120x300x50 cm)


Numa sala de espera de um hospital.

Homem - Dá para vc parar de me chamar de papai Noel!

Moça embriagada- Olha a sua barba tão grande. (pausa) E que nariz grande que você tem, e que orelhas enormes que vc tem. Já sei você é o lobo mau que comeu a vovozinha! Literalmente. (Ri descontroladamente)

Homem - Respeita que eu podia ser teu avô. Essa juventude tá sem limites. (pausa)

Moça - Um conselho pro bom velhinho. Vai pra casa. A mamãe Noel tá sendo bem cuidada na UTI, você ouviu, vai pra casa. Olha que o Roberto Carlos já deve estar cantando. “Então é Natal, o Ano novo também, o ano termina e começa outra vez...”.

Homem - Quem canta essa musica é a Simone.

Moça - Jura? (pausa) Eu tinha certeza que era o Roberto Carlos, o cabelo, o terno branco. (a moça senta numa cadeira).Cadeira dura. Eu vou esganar a Estela. Passar a noite de natal numa cadeira dura dessas. (pequena pausa) Sem a gritaria da família, sem briga, sem ouvir “Então é Natal, e o Ano Novo também...” (debochada) Olha, acho que vou me matar! (Ri)

Homem - Nesta vida tem horas de a gente tem que escolher o menos pior. (pausa) Você tem que beber menos, você é muito nova pra isso. Não sei como não te internaram e te colocaram no soro. (pausa) O que a sua amiga tem?

Moça - Sífilis Vaginal. (homem demonstra embaraço e a moça ri escandalosamente) To brincando! A Estela é minha irmã. Ela estava com dor de cabeça forte. Eu falei para ela beber um pouco que passava. Mas ela não quis! A boba quis vim por hospital. Eu trouxe.

Homem - Você veio dirigindo?

Moça - Papai Noel me conta uma coisa! Confessa só pra mim, o senhor é petista não é? A barba grande e a roupa vermelha. Olha se eu fosse o senhor eu virava presidente e a mandava colocar umas cadeiras mais confortáveis aqui. Cadeira não. Poltronas. É isso poltronas.

Homem (entrando no devaneio da moça) - E uma TV de 42 polegadas, igual a que eu vi na novela.


Moça - É isso ae Papai Noel. Agora tamo falando a mesma língua...  




(A situação acima foi criada pela Bárbara do Amaral. Trata-se de uma primeira versão, baseada em nossa apreciação da obra da artista Sandra Cinto, apresentada na postagem "Sem título - obra de referência".
Outras versões serão escritas a partir de sugestões e análises feitas neste blog pelos colegas e outros interessados)

Sobre estrelas - de Carina Freitas



(Sandra Cinto, "Sem título" - 2004, pigmento sobre chapa de mdf pintada, 65,8x159,5x0,8cm)


HOMEM – Daqui dá para ver o sol vermelho caindo sobre a cidade. Pena que quando ele se esconde, o céu se torne tão sombrio.

MULHER – Devia colocar uma grade de proteção. Uma criança pode cair desta altura. É perigoso, viu!

HOMEM – Eu sei, mas acho um pecado... Prefiro esta janela aberta.

MULHER – Você já viu a cozinha?

HOMEM – Não, não vi.

MULHER – Ah... sua esposa vai adorar! Se bem que para cozinhar só para mim acho grande demais.

HOMEM – Poderia colocar aqui uma poltrona confortável. Depois do jantar me sentaria um pouco e apreciaria o céu estrelado. Adoro as estrelas, sabe. Elas tem um brilho mágico.

MULHER – Deve dar para ver o playground e a churrasqueira desta janela...

HOMEM – Não.

(breve silêncio)

MULHER – Não vai ver os outros quartos?

HOMEM – Se eu pudesse, comprava esta janela para mim.



(A situação acima foi criada pela Carina Freitas. Trata-se de uma primeira versão, baseada em nossa apreciação da obra da artista Sandra Cinto, apresentada na postagem "Sem título" - obra de referência).
Outras versões serão escritas a partir de sugestões e análises feitas neste blog pelos colegas e outros interessados)

Réquiem - por Adriano Geraldo



(Sandra Cinto - "Sem título", 1998. Fotografia - 148x50cm)

Dois homens = 1 lava os pratos, 2 esta sentado com as mãos sobre a mesa de frente para o publico. Desolação. Diálogos lentos e silêncio.

2 = O menino está morto.
(Silêncio)
1 = É (suspira profundamente) morreu muito jovem. Uma criança mesmo... (Silêncio) Você vai voltar para casa?(Silêncio) Acho que você deveria (Silêncio) vão ficar preocupados (Silêncio) agora você precisa cuidar da saúde (Silêncio) não vai querer voltar pro hospital.
(Silêncio)
2 = O menino está morto (Silêncio) (Procura algo nos bolsos,encontra, analisa com os olhos e coloca sobre a mesa) Queria aprender a rezar... Mas não lembro... como era? Aquela? Creio em Deus pai todo poderoso criador do céu e da terra...
(Silêncio)
1 = Como ele gostava de estrelas, tudo que tinha, tinha estrelas (Silêncio) mania (Esboça um pequeno sorriso) (Silêncio) vou trocar de sabão, este não tem cheiro, minha mãe usava um sabão com cheiro bom, mas não lembro a marca. (Silêncio) Me ajuda vai, seca pra mim e guarda os pratos. (Silêncio) (Observa o outro por algum tempo e continua) e em Jesus Cristo seu único filho, Nosso senhor...

2/1= (Um acompanha o outro em um coro inseguro) Que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai, todo poderoso, de onde a de vir a julgar os vivos e os mortos. (Silêncio)(Dúvida) Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém. 
(Silêncio)
2 = O menino está morto.
(Silêncio)
1 = Ele tava trabalhando do que? Cê sabe?

2 = Tava vendendo cristais em uma loja de pintura, de quadro, alguma coisa assim... (Silêncio) Mas ainda não tinha largado a noite. (Silêncio) Você tem vela?

1= No armário ali atrás. Cuidado com o chão, porque a máquina tá vazando.

(Silêncio) (2 volta acende a vela e a coloca sobre a mesa)
2 = Salve Rainha, Mãe de Misericordia, vida e doçura esperança nossa salve... (Silêncio) Não lembro...

(Silêncio)
1= A voz bradamos... (Silêncio) (Dúvida) A vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas... (Silêncio) (Dúvida) ( 2 sai em de cena, 1 continua sem perceber sua ausência) Não lembro (Silêncio) Mas você nunca foi de rezar, até tirava sarro dessas coisas, não precisa mudar pelo que aconteceu (Silêncio) Você devia tomar um comprimido, descansar, tudo isso é muita coisa...
(Silêncio)
1= O menino está... (Vira-se e percebe-se sozinho, olha ao redor e percebe o vazio do lugar, sai.)

Luzes se apagam lentamente. A vela é esquecida.




(A situação acima foi criada por Adriano Geraldo. Trata-se de uma primeira versão, baseada em nossa apreciação da obra da artista Sandra Cinto, apresentada duas postagens atrás.
Outras versões serão escritas a partir de sugestões e análises feitas neste blog pelos colegas e outros interessados)


Estilhaços - de Carla Silva


(Sandra Cinto - "Sem título" da série "Noites de esperança" - 2002, desenho sobre madeira pintada, 200x150cm)

ENGENHEIRO

(está visivelmente bêbado) Eu, tu, ele, ela. Nós... Vós. Eles. Elas. (ri) Ópio é heroína? (vomita)

ESCRIVÂO

Você bateu no meu carro! Que merda...

ENGENHEIRO

(olhando os carros) Vixi... (silêncio). Fodeu todo o vidro do meu carro...

ESCRIVÃO

Você entrou na rodovia sem olhar, porra.

ENGENHEIRO

Seu carro apareceu do nada.

ESCRIVÃO

(ao celular) Marcão, to aqui perto da entrada da marginal. Manda alguém aqui. Bateram no meu carro. O cara tá chapado. (ouve) Não, meu! Ele vai vomitar no meu carro, pô! Manda uma viatura. (desliga o telefone)

ENGENHEIRO

(silêncio) Ó... toma aqui meu cartão. (ri alto) Meu cartãozinho. (gargalha)

ESCRIVÃO

(ao celular novamente) Oi amor. Já to chegando, tá? (ouve) Não, tá tudo bem. (ouve) Tá. Um beijo. (desliga)

ENGENHEIRO

Ó... Eu não consigo mais dirigir.

ESCRIVÃO

(atende o celular) Oi. (ouve) Já? Faltam só quinze minutos, é? (silêncio) Não vou conseguir chegar aí, amor. Bateram no meu carro. (ouve). Não. Não vou autuar o cara. Ele ta vomitando, vai fazer uma puta sujeira. (ouve) Tá. Beijo. (desliga. Silêncio) Que saco.

ENGENHEIRO
Eu odeio essa porra de natal. (acende um cigarro)

ESCRIVÃO

Me dá um cigarro aê.

ENGENHEIRO

Pega aê... (oferece o maço. Olha os carros novamente e sente um cheiro). Vixi... agora tá vazando gasolina.


GAME OVER



(A situação acima foi criada pela Carla Silva. trata-se de uma primeira versão, baseada em nossa apreciação da obra da artista Sandra Cinto, apresentada na postagem anterior.
Outras versões serão escritas a partir de sugestões e análises feitas neste blog pelos colegas e outros interessados)

"Sem título" - Obra de referência


("Sem título", da série "Noites de esperança" - 2006, caneta permanente e pintura sobre parede, 300x500cm)


Algumas de nossas notas de apreciação conjunta da obra e que irão estimular a escrita dos próximos textos:

Sinos, harpas, eco. vento. Som suave e contínuo. Música de ninar, som suave e contínuo, som de infinito.
Som de eletricidade, de lavanderia - máquinas batendo. Silêncio que precede o grande som.
Multidão, explosão, estrondo, perigo. Big bang.
Silêncio que pode me entristecer.

Cheiro de neve, de sabão. Cheiro de frio. Cheiro de nada.

Gosto de açúcar. Doce. Gosto de halls preto, de vidro, de gelo vencido. Gosto de ice cubes, de sorvete azul.

Frio, frescor. Não, muito frio.
Pico de montanha a menos 10º. Uma zul diferente. Constelações, portal para outra dimensão.
Onírico - visões de olhos fechados.
Parede-céu, chão-céu. História sem fim.

É dúbio, não é o que parece. Não é tão bonzinho assim. Este aéreo existe?
Céu-montanha, luz-noite, anjos sem rosto. Rodapé.
Sonho gerado pelo pé no chão, que encontra sensação desconfortável na vida real.

Sombras de alguém que um dia foi. parece gente debaixo de lençõis. repetição.
Caminhos traçados em profundidade.
Galáxia-tempo. teleférico de estrelas. Fios de fantoches. Estrelamento.
Alegria, vitalidade, mistério, brilho.

Dificuldade enorme em reconhecer alguma coisa. Não traz sensação nenhuma.
Nebulosa, cristais, ilusão, pintura ou colagem?
Ilusão entre figura e fundo.
Lembra a boneca Emília, teia de aranha com bichos presos.

Lembranças da primeira observação com o telescópio, de enfeites meio bregas de natal. Sombras de luz e seus reflexos na parede do quatro, luminária de filme que gira no quarto.
Minha mãe andando pelo chão molhado, da máquina de lavar que vaza.

Palco, pedras de gelo que caem, pontes, duas torres.
Apartamento da afilhada, sacada de seu quarto. Sensação boa.
Parece que levei pancada na cabeça. Liberdade. Iceberg.
Parece que obra saiu da tela. O centro é menos leve, menos aéreo. Bico de pena.

De longe anjos, de perto monstros. Fios que levam. Pra onde?

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Sandra Cinto



A próxima obra a ser utilizada como estímulo para nossos escritos será de autoria de Sandra Cinto.
Os motivos que nos levaram a essa escolha são de ordens várias. As primeiras são afetivas. Sandra é de Santo André, como muitos integrantes do ateliê que escolheram a cidade para viver ou trabalhar. E também como a maioria estudou na FATEA (agora FAINC) que abriga nossas experimentações de escrita.


("Sem título" - Fotografia - 1997/1998)

Sandra nasceu em 1968 e dentre os artistas que a influenciaram estão Leonilson, fonte de inspiração de nossos trabalhos anteriores, e outros da chamada Geração 80.


("Sem Título" - 1999 - Fotografia e desenho s/ madeira pintada, 25 x 92 x 15 cm)



Há também um outro motivo, dessa vez artístico. Há alguns anos, Sandra e Albano Afonso coordenam um coletivo de artistas plásticos chamado Ateliê Fidalga, em São Paulo. A sistemática de trabalho é semelhante à que adotamos em nosso ateliê de escrita. os artistas se reúnem uma vez por semana, levam suas ideias e esboços para serem compartilhados com o grupo e receberem sugestões para a execução ou finalização das obras.