(Beatriz Milhazes, O selvagem, 1999, 189 x 249 cm)
I
Onde não é o principio da realidade
Foco acende lentamente. Uma jovem vestida de branco surge à procura de algo.
Helena – Bom dia! Bom dia! Bom dia?(Procura algo) Bom...? (Para a plateia) Meu nome é Helena, vivo aqui neste jardim há não sei quanto tempo. (desenrola uma tapeçaria de flores) Estava procurando a Voz sem Corpo, ela vem todos os dias. Ela me ensina sobre todas as coisas e me conta histórias de como eu nasci. A Voz me ensinou a ler e a escrever e me ensina como devo ser. Ela me disse que tenho sete anos, um dia, me contou que nasci da casca de uma árvore, outro de uma flor pequenininha, ontem disse que surgi da sombra de uma nuvem. Disse que meu nome é Helena e é assim que me chamo. (Sorri) Voz sem Corpo? Voz sem Corpo?(Procura o amigo)
Voz sem Corpo (Fora de cena) – Bom dia, Helena! Como você está feliz esta manhã! Aposto que quer que te conte outra, não é mesmo?
Helena – Eu quero sim. Eu adoro suas histórias, Voz sem Corpo!
Voz sem Corpo – São suas histórias, Helena, não minhas. Agora escuta, vou te contar sobre o vento, é preciso saber ouvir o sussurrar dele em seus ouvidos, (Helena faz gesto de escutar) saber ver sua presença pela copa das árvores (Helena balança os braços como se fosse uma árvore ao vento) e saber que é preciso vestir uma pele para que se possa sentir,(Helena toca a própria pele) e a pele é a morada do corpo.
Helena – Mas então... Voz sem Corpo... Você...
Voz sem Corpo – Sim, Helena... Não posso sentir o vento, alguns de nós somos feitos por pedaços, seria uma grande alegria se pudéssemos juntar todas as partes e sermos um só! Seria um milagre! Mas somos muitos mundos, Helena! (Helena entristece) Você quer um presente? (A Voz tenta animar Helena, a menina acena “sim” com a cabeça) Então está decidido!
Barulho de vento, música, surge serpenteando no ar um lindo lenço dourado. Helena o pega brinca e dança com ele por algum tempo.
Helena – Que lindo! É lindo! Adorei o presente!
Voz sem Corpo – Ele é um lenço mágico, com ele é possível andar sobre as águas sem jamais afundar, proteger-se do frio, do fogo e da chuva e, de qualquer material cortante como a espada de um cavaleiro, por exemplo! Agora, para ficar com ele você vai precisar me prometer duas coisas. Você quer ficar com ele?
Helena – Sim! Eu quero! Quero sim!
Voz sem corpo – Ótimo! Olhe ali em seu jardim. Está vendo a caixinha florida? (A menina corre para pegá-la) Ela é um relicário, ela guarda segredos muito importantes e uma relíquia raríssima, mas nunca, em hipótese alguma, você poderá abrir essa caixa! (Helena se assusta já que estava prestes a espiar o que tinha dentro)
Helena – Como? Eu não entendo.
Voz sem Corpo – Não posso revelar mais, a segunda coisa que deve me prometer é que nunca sairá dos limites do jardim.
Helena – Mas por quê?
Voz sem Corpo – Além do jardim há o Labirinto Sombrio formado pela árvores e plantas da floresta e dele, até hoje, ninguém conseguiu escapar. Você promete? (A menina olha o lenço dourado)
Helena – Sim, prometo!
Voz sem Corpo – Ótimo! Agora devo partir, terei que fazer uma longa viagem e ficarei longe alguns dias. Não se esqueça do que me prometeu, Helena, e divirta-se com seu lindo lenço dourado. (A Voz desaparece com uma gostosa risada)
Helena – Voz sem Corpo? Voz sem Corpo? (Não há resposta, a menina dá de ombros e continua a brincar com seu novo presente. As luzes se apagam.)
II
Um novo amigo. Será?
Foco acende lentamente. Helena desperta. Ela procura alguém.
Helena – Ahhhhhhhhhhhhhhh! Bom dia! Bom dia! Bom dia? Bom dia Voz sem...
A menina lembra-se do dia anterior. Desiste de procurar o amigo e começa a brincar com o lenço dourado. Cansa da brincadeira. Começa a brincar com os limites do tapete-jardim, equilibra-se, arrisca a ponta do pé, etc. Cansa da Brincadeira.
Helena – Tudo é tão chato. Não gosto de ser só, quando a Voz sem Corpo não aparece me sinto tão sozinha. (Vira-se e olha para caixa. Corre até ela.) É linda a minha caixinha, toda enfeitada com círculos de flores, como a Voz disse que era o nome? RE-LI-CÁ-RIO... (Soletra brincando com os sons) e essa flor no meio deve ser a chave.
A menina acaricia a caixa. Helena para e olha para a plateia. Ela abre.
Helena – Um colarzinho de miçangas, um perfuminho... hum... cheiro de lavanda, um pandeirinho, incensos, óleo... urgh... Que nojo. (Cheira) Uma agulha... ai, parece tão pontiaguda. Hum... O que tem mais aqui dentro? Parece um diário!
Larga tudo e começa a ler. Música. A menina levanta no ritmo da música e sai, volta com uma carriolinha (pode ser um pequeno vaso), nela coloca um pouco de terra. Age como se fosse fazer uma feitiçaria. Às vezes consulta o diário. Começa a montar um tipo de jardim: planta flores e instala os incensos, acende-os, derrama o óleo, enfeita-o com uma coroa de flores, pega o pandeiro e começa rodopiar em volta do estranho objeto. Música para. Ela cansa e para também. Senta e observa. Fica impaciente.
Helena – Que chato! Não aconteceu nada! (Helena levanta e sai com a carriola ou vaso)
Dá de ombros e vai se sentar do outro lado brincado com sua caixinha. Um ser de barro com uma coroa de flores na cabeça surge e vai lentamente em direção de Helena.
Helena – AAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH... Quem é você? O que você quer? Você quer me fazer mal? (O ser de barro anda lentamente em direção da menina que permanece estática. Ele arranca uma flor pendurada em seu próprio corpo e prende-a em seu vestido. A menina se acalma.)
Helena – Você quer me fazer mal?
O ser de barro acena em negativa para ela.
Helena – Quem é você? Qual é o seu nome?
Silêncio.
Helena – Você não tem nome?
O ser de barro acena mais uma vez em negativa.
Helena – Você não fala?
Acena outra negativa.
Helena – De onde você veio?
Ele aponta na direção onde Helena tinha feito a mágica.
Helena – Eu fiz você?
O ser de barro acena sim com a cabeça.
Voz sem Corpo retorna, seu chamado vem num crescente.
Voz sem Corpo – Helena? Helena? Onde você está? Não sabe as histórias que tenho para contar! Onde você está? (A menina tenta esconder inutilmente o ser de barro) Helena! (Voz sem corpo, aflito) Não, Helena, você abriu a caixa!
Helena – Foi... Foi sem querer...
Voz sem Corpo – Mas você prometeu!
Helena – Por favor, Voz sem Corpo me perdoa? Eu juro que eu concerto tudo! Eu juro que eu desfaço o encanto!
Voz sem Corpo (Com pesar) – Ah, Helena, agora não tem mais jeito... É impossível desfazer, seria perigoso demais e você teria que pagar com sua própria vida.
Helena – O que? Mas o que eu faço agora?
Voz sem Corpo – Agora? Agora você será responsável por ele. Terá que cuidar dele com todo o cuidado.
Helena – Eu cuido! Juro que cuido dele! (Esperançosa)
Voz sem Corpo – Então você decidiu! Cuidará dele! Mas lembre-se, ele ainda é mais barro que humano, não aprendeu a desejar, nem aprendeu o que é a dúvida. Ele te amará completamente, ele não dormirá nunca, nunca lhe questionará e nunca vai deixar de estar ao seu lado. Você entendeu?
Helena – Vai ser maravilhoso! Se for assim quero ficar com ele para sempre! Você quer ser meu amigo? (Para o ser de barro)
O ser de barro acena sim com a cabeça.
Helena – Ai que bom! Tenho tanta coisa para te contar! Vamos, quero te mostrar meu jardim! (Pega na mão dele e começa a sair de cena) Precisamos te dar um nome, hum... que tal Barrento? Acho legal!
Ele acena sim com a cabeça.
Helena – Ai, não... não... Barrento é muito... muito... pegajoso. Que tal... Cara de Terra? É um nome forte, eu gostei! E você?
Ele acena sim com a cabeça.
Helena – Ai, não... não... Cara de terra é muito... muito duro. Que tal... que tal... que tal... Bolinho de Terra?
Ele acena sim com a cabeça.
Helena – Isso, Bolinho de Terra! Igual quando brincava de comidinha no jardim! Bolinho é tão... tão... doce! Isso! Bolinho de Terra! Vem vou te mostrar onde moro, é lindo, você vai ver! Vamos, nossa, mas como você é lento hein! Vamos Bolinho... (Saem)
Voz sem Corpo – Pobre Helena! Foi feliz até agora em seu pequeno jardim. (Suspira com pesar) Agora terá que aprender o que é a tristeza.
...
(Texto de fantasia criado por Adriano Galego Geraldo e inspirado em tela homônima de Beatriz Milhazes)
Achei a tua melhor produção no Ateliê! Vi cada cena me permitindo transformar alguns diálogos em rubricas. E se você o transformasse em um mini espetáculo? Com a atriz bailarina, o cenário feito por você e os demais personagens de objetos animados? Pense com carinho? Invadi demais?
ResponderExcluirEsta é a segunda versão do texto.
ResponderExcluirDesde a primeira redação, Adriano já tinha em mente algo voltado para a cena, e não uma narrativa.
Fiquei surpresa com o caminho que a história tomou e, agora, curiosa pra saber onde isso vai dar. Já formulei várias hipóteses na minha cabeça. Tomara que ele faça logo a terceira versão!
Como disse a Andreia, este é o texto mais maduro do Adriano, onde ele mantem os elementos que fazem parte do seu universo (mais sombrio, niilista), mas trabalha com eles de forma diferente. É como se os textos anteriores se passassem no escuro da noite e este, no final da madrugada. (Desculpem a pessoalidade, mas lá vai: meus sonhos são todos em preto e branco, essas gradações de cinza me são familiares...)
O autor retoma aqui o mito de criação. Nessa releitura da figura do Golem, agora criado por uma menina, começa a propor um tema que, se desenvolvido seriamente, pode muito bem falar aos nossos dias. Creio que, mesmo sendo já uma segunda versão, a história dá indícios de que pode ser ampliada, aprofundada em vários aspectos.
As interdições, as desobediências e suas consequências, a delimitação do território, a entidade misteriosa e com poderes, são elementos míticos e fabulosos que Adriano vem manipulando muito bem até agora. Tão bem que inspiram a nossa imaginação. Será a menina tão ingênua? Um monstro chamado Bolinho de Terra, por sua vez, do que é capaz? Essa voz sem corpo é de pai ou de algoz?
Creio que o mergulho na análise que fizemos da tela de Beatriz Milhazes pode ajudar a manter um norte, se é que ele já não está dado na cabeça do autor!
o autor começa a história com a figura de helena, uma personagem que retrata um universo feminino aparentemente ingênuo e limitado.
ResponderExcluirmas nos diálogos que seguem, tudo vai ficando amplificado, e daí me parece que surge um estrelamento. na minha opinião, há várias possibilidades de interpretação para a obra.
é um texto que traz uma riqueza de imagens e sensações, o que é interessante para uma concepção cênica que opte por um aprofundamento do tema proposto.
eu gostei bastante, e também concordo que essa é uma das melhores produções do adriano no ateliê.
Adri! companheiros de jornada! Feliz 2011...
ResponderExcluirRetomando o ciclo em seu ritmo, no Blog:
Adriano!!
Você sempre surpreendendo. Essa inquietação e conhecimento do feminino me intriga. Embora aqui, subliminar!
E intrigada acompanhei todo o trajeto como expectadora ávida! quero mais, mais porque me alimentou a alma, me trouxe incertezas e acima de tudo me desalojou os sentidos. Tudo ficou grande e pardo, lento e desmedido, e esse é o processo que me anima, pois descontrói em mim, algo que poderei recontruir depois.
Curiosamente, terminei de ler uma quadrilogia da Anne Rice sobre a trajetoria de uma família dos bruxos Mayfair, e em um dos livros ela desenvolve uma voz de um ser que não há. Um ser que fica centenas de anos em formação dentro da essência dessa família, com seus desejos e esperanças, até estar pronto para tomar forma. Perturbador e excitante.
Comento, pois, essas imagens, assim como o teu texto tão poderoso, ficam em minha mente, aguardando um "desfecho" que pode ou não aparecer. Mas sinto que esse texto precede uma maturidade, interna e em fase de crescimento, teu, pessoal e intransferível. De sua obra como passos mais firmes e focados.
Me chama a atenção os objetos concretos que vão aos poucos fazendo parte do texto... isso tudo vindo da obra de arte de Beatriz, isso mais que nunca é espantoso. Esse processo imagético que a obra estimula. Esse conjunto que abre as portas de nossa janela da alma, para o inconsciente, esse processo que nos permite produzir.
Meu "e se..." é que depois de descansar um período, releia, retome, realinhe. Não sei se em espetáculo, ou se apenas um texto livro.
Mistérios em crescimento!
Mas que venham novas fases em frases, parágrafos ou cenas, aguardamos...
"um novo amigo, será?"
grande abraço,
Elaine