quinta-feira, 7 de junho de 2012

Ulisses Molly Bloom – dançando para adiar - Anotações de viagem







Tenho notado de uns tempos para cá, como espectadora, dois tipos de espetáculo que fogem aos padrões dramáticos. Um deles já nasce como acontecimento, dada sua contundência, sua clareza, sua potência comunicativa. É como se já estivesse pronto, em estado de latência, esperando somente que algumas conjunções se fizessem para que viesse à luz, e cumprisse seu destino já determinado. Nesse tipo de espetáculo todas as transgressões parecem cabíveis e a nossa posição de espectadores, embora alterado o esquema de séculos de frontalidade e aparente passividade, adequa-se até com certa facilidade a elas.

Já o outro tipo congrega um número bem maior de experiências, e se refere a trabalhos que se situam entre a negação de modelos consagrados e a conquista de novos paradigmas que ainda não estão bem claros. Creio que é desses espetáculos que parte do público diz “não entendi nada”, “teatro contemporâneo é tudo assim, estranho”, sem compreender a função que eles exercem na renovação constante da linguagem.
Nessas ocasiões, o espectador também é convidado a rever seu papel. Se até hoje muitas (e ótimas) produções mantêm a prática de entreter o público, oferecendo a ele um tipo de fruição que vai ao encontro de suas referências e, por isso, tende a reafirmá-las, outras há que subvertem as expectativas, que estimulam à ampliação das referências. Fazem isso jogando com o corpo do espectador, seus sentidos, trabalhando com sonoridades mais do que com o sentido das palavras etc.
Enfim, propõem um novo pacto entre cena e plateia que, mesmo não se instalando de forma contundente e clara como os espetáculos do “primeiro tipo”, cumprem a missão de testar novas possibilidades de relação e conformação.

Ulisses Molly Bloom – dançando para adiar situa-se, a meu ver, neste segundo caso. A coragem e a ousadia de trazer para a cena aspectos da famosa obra de James Joyce aponta caminhos para outras propostas do gênero. Um texto que representa as primeiras tentativas de modernização do romance não poderia ser adaptado para o teatro simplesmente com base em seu enredo. Seria preciso que também a linguagem teatral fosse confrontada. Confiaríamos ainda às palavras e ao raciocínio lógico as chaves do sentido? Limitaríamos a odisseia do personagem ao espaço cênico fechado, convencional? O público seria observador/ouvinte ou companheiro de viagem? Dublin seria uma paisagem da memória, da imaginação ou da composição com a cidade aqui-agora da narrativa? Bloom e sua amada atravessam os tempos e nos alcançam, com sua coreografia de palavras e gestos, convidando-nos a tentar compreender o nexo das coisas – incluído aí o próprio teatro.

Assisti a uma das primeiras apresentações do trabalho, em Suzano, São Paulo. Ainda havia ajustes a fazer em relação ao volume de voz, à clareza de algumas falas, ao ritmo, à definição de alguns estados, por exemplo. Talvez com o tempo o grupo possa envolver um pouco mais o público, se não fisicamente, ao menos na criação de uma atmosfera mais intensa de cumplicidade para com o personagem que vaga. Gosto de pensar que eu também, como espectadora, empreendi minha odisseia ate chegar ao teatro. Gosto de pensar o espetáculo como um ponto significativo na trajetória do meu dia. Um ponto que irei conservar na memória e poderei recapitular para melhor compreender, como faz Bloom.

Parabéns à Cia Estrela d'Alva pela reunião de tantos e tão bons profissionais em torno do projeto. Haveria muito mais a dizer. Sempre. Porém, fecho este breve comentário falando do empenho dos atores. É tocante acompanhar tão de perto o seu esforço. Vejo-os como duplos de seus personagens – Lígia e Paulo perseguindo Molly e Leopold, incansavelmente. Eles escapam, se escondem, enganam os intérpretes. Talvez Joyce faça isso conosco também: ofereça pistas que logo são retiradas ou mostram-se falsas. O fato é que os atores estão também esgotados ao fim do espetáculo-jornada, e eu vejo que a busca ainda vai continuar por muito tempo. Essa, dos artistas que querem propor novas maneiras de fazer e fruir o teatro.


Adélia Nicolete

6 comentários:

  1. Tenho um certo 'medo' de espetáculos que fogem do padrão dramático. Quando algo me pega e envolve sem que eu faça qualquer esforço, como no caso do seu exemplo, eu, sempre leiga, entendo aquele clichê: a magia do teatro. Quanto a ler Ulysses, só na próxima encarnação. :) Acho. Beijos.

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  2. Eu também, Rô, não tenho nada contra a magia do teatro. E adoro quando ela se instala também em espetáculos não convencionais, como o Hysteria, do Grupo XIX, ou O livro de Jó, do Vertigem, para ficar só em dois exemplos.
    Mas com o tempo venho gostando de me desafiar, assistindo a trabalhos mais difíceis e descobrindo que, muitas vezes, a magia se dá é dentro de mim!
    Oh, minha querida, que bom te ler aqui no meu cantinho de costura! Bem vinda!

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  3. Que bom, você vai me ajudando a vencer esse medo. Continue me dando suas dicas. E quanto ao James Joyce, também vou ficar com o Dublinenses como obra de arte que eu li dele. :) Vc acredita que o Jô leu Ulysses duas vezes?!!! Beijo.

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