quinta-feira, 7 de junho de 2012

As formas não convencionais e o público de teatro




Bom retiro 958m - Teatro da Vertigem - SP 
Direção de Antonio Araújo


Um guia de entretenimento de São Paulo em março de 2012 registra mais de 50 espetáculos teatrais na cidade.1 Se nos detivermos no perfil de cada um, veremos que a maioria transgride, mais ou menos radicalmente, a estrutura dramática consagrada. Assim, notamos a utilização de recursos tais como ausência de uma história facilmente reproduzível; simultaneidade ou fragmentação de cenas/situações; paralelismo e assincronia das falas, emissão de texto que foge à troca dialógica, ou um diálogo que parece conversa; trânsito por diferentes tempos e lugares; interlocução com a dança, a música, o cinema, as tecnologias; indefinição, indeterminação ou inexistência de personagens; participação mais concreta do espectador, motivada pela disposição da plateia, pela movimentação no espaço ou pela interação com a cena; o caráter de experiência, de evento ou comunhão, de “presentificação” mais que de representação, e tantos outros. Isso tudo desenvolvido, em grande parte, por coletivos de criação – fator determinante para a liberdade de pesquisa, pelo não atrelamento às exigências de um mercado que supõe o que vai atrair ou não público e prestígio.

O que temos notado, porém, é que mesmo com o aumento de trabalhos que fogem a uma estrutura dramática conhecida - e reforçada pelas novelas e pelo (melo)drama cinematográfico – permanece certa resistência a tais iniciativas. Reações semelhantes às que encontramos em certas exposições de artes visuais são hoje recorrentes no teatro, mesmo por parte de colegas: “isso não é arte”, “isso não quer dizer nada”, “faz-se qualquer bobagem e vira arte contemporânea”. Digamos que “teatro contemporâneo” é, para grande parte do público, a definição de um tipo de espetáculo complicado, que não somos capazes de “decifrar” e que, em geral, não diverte. Isso não deixa de ter um fundo de verdade: o “contemporâneo” oferece mesmo alguns obstáculos e cabe a nós, artistas e pesquisadores, oferecer condições para que eles sejam ultrapassados pelo público.

O filósofo italiano Giorgio Agamben sugere algumas imagens para se referir ao termo “contemporâneo” que podem ajudar nossa reflexão. Fala primeiramente da intempestividade, retomando Nietzsche, que em 1874 publicou Considerações intempestivas, cujo objetivo era “acertar as contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente.”2 “Intempestivo” traz um sentido de inadequação, de algo que não é próprio ou característico do tempo em que ocorre. Portanto, para Nietzsche – e para Agamben – é verdadeiramente contemporâneo aquele que é extemporâneo, que não está perfeitamente ajustado com o tempo presente e, por isso mesmo, é capaz de percebê-lo e apreendê-lo mais do que qualquer outro.3 É como se o fato de se estar completamente mergulhado no presente e em tudo o que isso implica – permanente atualização - nos tirasse a capacidade de nos posicionarmos frente a ele. Só o conhecemos verdadeiramente quanto dele nos afastamos e sobre ele formulamos nosso pensamento.

Agamben utiliza também a imagem das trevas do presente. Sugere que se olhe o escuro do próprio tempo e não suas luzes para se identificar o contemporâneo, afinal “todos os tempos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade, obscuros”. É contemporâneo quem é capaz de mergulhar nessas trevas e criar daí a sua obra.4 É isso: afastarmo-nos do presente a fim de buscarmos o que há de escuro nele, porque as luzes são o aparente, o óbvio e, por isso, o que é mais fácil de identificar. Portanto, mais do que preconceito ou ignorância, aqueles comentários acerca do teatro contemporâneo revelam que estamos, muitas vezes, identificando a luz, o aparente da obra. E que talvez, para uma melhor fruição, precisemos aprender a identificar o que a obra não revela. Isso se faz, a nosso ver, colocando-nos diante dela sem as lanternas que trazemos sempre conosco: nossas referências e preferências, verdades, certezas, nosso modo de ver, nossos critérios e julgamentos. Mergulhar os olhos nas trevas que a obra nos propõe, aceitando a vertigem, o desconforto, o desequilíbrio, a insegurança e, aos poucos, deixar que ela mesma nos mostre o que traz oculto.
Sabemos o quanto há de relativo nessa proposição. O sucesso maior ou menor desse mergulho vai depender da predisposição do espectador e de sua formação, da mediação com a obra, do exercício e sua frequência etc. Trata-se, porém, de uma prática necessária em relação à arte contemporânea.

A nosso ver existem três caminhos principais e coligados para que o contato com o teatro não convencional se torne uma prática menos dolorosa e mais efetiva. Um deles é a abertura do processo criativo ao espectador e a desmistificação do fazer artístico. Grande parte das vezes obra e processo são indissociáveis. Pensamos que uma formação de público só se efetiva com o compartilhamento da criação, pois quando se conhecem as bases, as inquietações e propostas que movem o trabalho, as referências práticas e teóricas do grupo, por exemplo, pode-se chegar a uma compreensão maior do resultado.5 Paralelamente, os Festivais e Mostras tem papel fundamental na oferta de uma diversidade de produções, cursos e seminários com vistas à ampliação de referências e à reflexão, tanto por parte dos artistas quanto do público em geral. E aliamos a essas duas vias a constante reflexão teórica e sua divulgação em publicações especializadas e meios acessíveis ao espectador em geral – a internet tem sido grande aliada nesse sentido.

Quem sabe, numa ação conjunta entre artistas, organizadores de eventos e pesquisadores possamos conquistar cada vez mais espectadores que fruam, destemida e apropriadamente, de um teatro não convencional.

Adélia Nicolete



1Divirta-se. O Estado de S. Paulo. 23/3 a 29/3/2012, p. 67 a 82
2AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó : Argos, 2009. p. 57
3Idem, p. 58.
4Idem, p. 63.
5Em relação a isso recomendamos a leitura de Patrice Pavis. A análise dos espetáculos. São Paulo : Perspectiva, 2003.


(Este artigo foi escrito especialmente para a Revista do FIT-BH 2012)

10 comentários:

  1. Puxa vida, Adélia, até quem nada entende de Teatro compreende suas palavras!!!Maravilhoso, muito esclarescedor!

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  2. Aninha, espero que nao esteja se referindo a si mesma, ne?! Porque voce entende um bocado de fazer teatro! Mais de uma decada de Conspiraçao!
    Um beijao pra ti e obrigada pelo comentario.

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  3. Olá Adélia, tudo bem?
    Esse texto deixa na gente a vontade de aprofundar a conversa. Porque realmente isso tudo que você aponta é uma inquietação de todos nós, artistas e público de teatro.
    Obrigado pelo momento de reflexão!
    Grande Abraço,

    Wallace Puosso (Cia. Teatro da Cidade)

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    1. Pois é, Wallace.
      Um artigo-aperitivo tem essa proposta mesmo: abrir o apetite pra outras conversas.(riso)
      Tenho recebido e-mails apontando mais questoes, inclusive da dança contemporanea.
      O assunto se desdobra realmente. Mas uma coisa importante tambem é essa retomada de contato com gente querida como voce.
      Obrigada pelo comentario. Estamos abertos a discussão.
      Beijos!

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  4. Querida Adélia.
    Muito precioso o seu texto. Quando trabalhava no SESC, deparava-me constantemente com produtores querendo "colocar" suas obras para o público dos teatros da entidade. A grande discussão interna sobre se esse ou aquele trabalho poderia ser fruido pelo público do SESC era se o mesmo (o público) poderia acompanhar ou entender o que a obra estaria propondo. Lembro-me bem de uma conversa com o Prof. Teixeira Coelho sobre essa questão, em que ele defendia que as pessoas fossem colocadas ante a obra de arte junto a uma mediação. E que essa mediação fosse a mais "suave" possível, no sentido de não fazer a cabeça de quem assiste ou frui uma obra à semelhança da cabeça e/ou preferência de quem media. Enfim, creio que o que falta às pessoas para um estabelecimento de relações prazerosas e proveitosas com a produção contemporânea (em teatro,dança, artes plásticas etc. é uma mediação de qualidade, generosa, onde o mediador se coloque mais como um velho amigo a quem se pode recorrer livremente no momento da dúvida. As instituições que promovem a circulação dos bens culturais deveriam recrutar esse tipo de profissional e aproximá-lo do potencial público antes, durante e depois do fato artístico (a apresentação, a mostra, a audição etc.) Resta saber como sensibilizar os gestores e administradores dessas agências para a importância dessa mediação para conquistar mais espectadores com condições de fruir, ou mais, de usufruir esses bens.
    Abraços
    Roberto Barbosa

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    1. Roberto, preciosa a sua observação, principalmente porque baseada na experiência de tantos anos no teatro do SESC.
      Concordo totalmente contigo em relação à mediação. Isso poderia ser feitos nas escolas, numa escala mais modesta, com obras selecionadas, estudadas, apreciadas. Ou mesmo com uma apreciação inicial seguida de mediação. Enfim, haveria tantas possibilidades.
      E eu acrescentaria que mesmo alguns grupos que, com a melhor das intenções, acredita estar fazendo "teatro contemporâneo" também tem uma série de questões, dúvidas e equívocos a esse respeito. Afinal, é tudo novo, pra todo mundo.
      Ou seja, é um tema complexo, né? E que tem afastado muita gente do teatro.

      Querido, obrigada pela sua visita e pela sua contribuição. Apareça sempre que quiser.

      Um abraço e até breve.

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  5. Oi Adélia!
    Seu artigo abre espaço para reflexão e para "um mergulho no escuro" e dialoga com as inquietações do novo processo de montagem da "Cia Teatro da Cidade". Valeu!!!!!!!
    Apareça aqui em São José dos Campos pra gente papear!!!!
    Abraço terno da Adriana Barja

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    1. Oh, Adriana, que bom saber que estamos em sintonia.
      Um ótimo mergulho procês, e se quiserem mais referências, é só entrar em contato. Meu projeto de doutorado é justamente sobre dramaturgia contemporânea.
      Beijão procê também.

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  6. Logo após ler escrevi um comentário super bonitinho diante dessa sua reflexão. Mas sinto que me expressar sobre esse tema é muito difícil. Não engloba, não satisfaz o meu desconforto diante desse desespero por me comunicar com a cidade, com o país, com as pessoas.
    Fiquei pensando em como falar. Em como mostrar isso. Pensei que seria por comentar: “=D”
    Mas passou pela minha cabeça as que as pessoas que leriam isso, ou mesmo você poderia compreender essa expressão como: “Essa menina é quer dizer o que com isso?” “É boba?” “Colocar uma carinha...é melhor nem comentar então...”
    PRONTO acabei cruzando com a sua reflexão que se transformou em tema e objeto de comunicação do meu comentário.
    Tentando escapar disso pra poder refletir sobre essa comunicação me enforquei.
    Então não consigo mais terminar e chegar em algum lugar, pois me enforquei.
    Obrigada pela corda.
    Mas com a corda no pescoço eu ainda vou achar uma forma de gritar.

    Carol.

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    1. Não se preocupe, Carol.
      Sua reaçao, sua expressao e seus comentarios depois da leitura de Sarah Kane, em 2010, ja mostraram quem voce é.
      As vezes as palavras nao sao suficientes, nem adequadas pra traduzir as coisas. E o teatro contemporaneo trada justamente disso, nao é?
      Mas como a gente ta condicionada à logica, ao raciocinio e a articulaçao verbal, achamos que nao entendemos nada. Nem comunicando. hehehe

      Vamos esticar a corda.
      Beijos, queridona.
      =D

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