domingo, 19 de maio de 2013

Tenement Museum – o teatro da imigração





A partir de meados do século 19, centenas de milhares de pessoas deixaram seus países rumo aos Estados Unidos, em busca de melhores condições de vida. A maioria delas, fugindo da fome, das guerras e da miséria, passavam semanas no porão dos navios, alimentada pela esperança de conferir de perto as ruas pavimentadas de ouro de que tanto ouviam falar.

Desembarcados em Ellis Island, próxima a Manhattan, os estrangeiros passavam por uma inspeção burocrática e sanitária, capaz de mandar de volta os que estivessem com a saúde ou a documentação irregulares. Os aprovados tratavam de procurar trabalho e abrigo, às vezes, em um mesmo local: os cortiços (tenements) espalhados, principalmente, em Lower East Side – o mesmo bairro escolhido por Julian Beck e Judith Malina para sediar o grupo The Living Theatre.

Conjunto de cortiços em Lower East Side

Quem dispunha de algum dinheiro podia alugar um apartamento num dos diversos prédios de até cinco andares espalhados pela região. Sem elevadores, claro, o preço diminuía na proporção dos andares. Nos primeiros tempos, as latrinas ficavam no quintal e não havia água encanada, apenas um poço que atendia a todo o prédio ou a vários deles. Sem iluminação elétrica, os corredores eram escuros e, com apenas uma janela, na sala, os moradores tinham de lançar mão de lampiões ou velas. Os banhos semanais eram de bacia ou numa pia – mesmo local em que se lavava as poucas roupas, estendidas na área comum. No frio, muito frio. No calor, o abafamento obrigava os moradores a dormirem na cobertura do edifício, para alegria das crianças.

As famílias numerosas, de até 12 pessoas, ocupavam uma sala, uma cozinha e um quarto minúsculo, geralmente destinado ao casal e ao(s) bebê(s). Durante o dia a sala era usada como área social ou como oficina de trabalho e, à noite, como dormitório. Tais oficinas, funcionando em condições insalubres e faturando muito pouco, abasteciam o mercado crescente de roupas e acessórios, localizado na área nobre da cidade.

Família na sala/dormitório do apartamento

Os órfãos, os desempregados ou os trabalhadores mais pobres dormiam nas ruas ou em alojamentos específicos para isso (flophouses), a preço baixo. Ali, assim como nos cortiços, as condições sanitárias e a qualidade de vida eram péssimas. Tanto que, a certa altura, os governantes e a população abastada viram-se obrigados a assumir a existência do Lower East Side e a providenciar o saneamento gradativo do bairro, a fim de evitar que possíveis epidemias atingissem os palacetes da região norte.

O segundo filme da trilogia O poderoso chefão, de F. Ford Coppola, ilustra de modo exemplar tanto a chegada dos imigrantes ao porto, a inspeção e a eventual quarentena, quanto a vida nos cortiços e no bairro dos imigrantes. Alemães, chineses, judeus, portoriquenhos, africanos, poloneses, irlandeses, russos, italianos habitavam, no início do século 20, o quarteirão mais povoado de uma região cuja densidade demográfica era a maior do mundo. É nesse quarteirão e em um daqueles cortiços que está instalado, desde o final dos anos 1980, o Tenement Museum de Nova York.

O comércio de rua era intenso

A fundadora do museu, Ruth Abram, tinha como um de principais objetivos estudar a identidade do homem americano, marcadamente influenciado pela multiplicidade de culturas que lhe deram origem. Face ao grande número de imigrantes legais e ilegais que continuam a chegar na cidade, a historiadora, preocupada com a intolerância e suas manifestações, considerou a fundação de um museu capaz de atender não só aos aspectos educativos, informativos e históricos, mas também à discussão de assuntos ligados à problemática da imigração. Assim, além de um perfil, digamos, turístico, a entidade oferece palestras, aulas de inglês para estrangeiros, auxilia na regularização de documentos e presta assistência em diferentes níveis. Seu slogan é “Revealing the past. Challenging the future” e resume a ideia de um contato com o passado que seja capaz de propor novas e melhores maneiras de se lidar com situações semelhantes, hoje e no futuro.

Um dos recursos utilizados pela equipe do museu para um contato sui generis com o passado é o teatro. Dentre os diversos roteiros de visita oferecidos, um deles é uma entrevista com uma “moradora” do cortiço, Victoria Confino, menina de 12 anos, cuja família imigrou da Turquia para os Estados Unidos em 1913. Mas, para que esse contato seja o mais “real” possível, é preciso que todos os visitantes interpretem igualmente o papel de estrangeiros, recém-chegados ao país, na época das grandes imigrações.

Os interessados na visita ocupam uma das salas do museu. O guia começa por informar que a jovem, uma judia, não fala muito bem o inglês, mas é muito esperta e capaz de responder a qualquer pergunta a respeito de sua terra, da viagem de navio, da chegada, da vida cotidiana e muitos outros assuntos. Como está sozinha no apartamento, ele avisa que não será fácil receber estranhos. Por isso, propõe que o grupo represente uma família à procura de uma vaga no cortiço. Nesse momento, cada um deve escolher que papel irá assumir diante de Victoria – pai, mãe, filho, filha, sobrinho, neto, etc. –, a nacionalidade do grupo e, de acordo com o papel, que tipo de pergunta faria à anfitriã. Um ensaio é feito, descartando perguntas sobre televisão, computadores, por exemplo, que não existiam naquela época. O guia estimula diferentes possibilidades de abordagem, enquanto assume, ele mesmo, o papel de professor de inglês da menina.

Cozinha/quarto de apartamento reconstituído
Tenement Museum

De posse de seus personagens, o grupo se encaminha para o número 97 da rua Orchard, antigo cortiço inteiramente reconstituído pelos historiadores. Nesse momento, ocorre uma viagem no tempo, um contato singular com o passado, como vislumbrou Ruth Abram. Entrando pelo portão dos fundos, notamos o quintal minúsculo e de terra batida e imaginamos seu uso. Subindo o primeiro lance de escadas, caminhamos em silêncio pelos corredores escuros e apertados do prédio, divididos entre o que somos (cidadãos visitantes do século 21) e o que iremos representar (estrangeiros, desterrados, de uma década longínqua). A espera no corredor escuro é fundamental para que possamos respirar a diferença entre o nosso modo de vida e as condições daqueles homens e mulheres.

O guia bate à porta e se anuncia como professor. A menina resiste em abrir a porta, já que as aulas costumam ser na escola. O mestre insiste, dizendo que trouxe uma família com ele, crianças inclusive, insegura, precisando de orientação. Victoria cede e abre a porta, recebendo-nos com seu sotaque carregado e uma gentileza sem igual. A personagem – interpretada por uma atriz de cerca de 30 anos, usando vestido, avental e um lenço cobrindo a cabeça – apresenta o apartamento, responde a todas as perguntas, mas também é curiosa, quer saber quem somos, de onde viemos, como foi a viagem, estimulando a que os visitantes se coloquem no lugar daquelas tantas pessoas assustadas, desorientadas e famintas, como a jovem e sua família, quando aportaram na América. O jogo é concluído com a preocupação de Victoria em relação à chegada dos pais: eles a proibiram de abrir a porta a estranhos. Ela nos leva até o corredor e deseja boa sorte em nossa nova vida.

É muito curioso que um jogo teatral seja proposto num museu da imigração. Viola Spolin, a criadora desse tipo de procedimento com atores e não-atores, iniciou sua vida profissional justamente com imigrantes, em Chicago. Trabalhando em um programa assistencial cuja proposta era o resgate e a conservação das manifestações culturais de cada povo, Spolin entrou em contato com jogos, brincadeiras, cantos e danças de diversos países, o que, sem dúvida, teve um papel significativo em seu futuro trabalho com os jogos teatrais.

Sala/quarto de apartamento reconstituído
Tenement Museum


Para finalizar essa postagem, que já vai longa, quero registrar que o slogan do Tenement Museum consegue desafiar não só os norte-americanos, mas qualquer turista que se disponha a olhar também para o próprio país. Foi impossível não lembrar dos meus antepassados, alguns dentre os milhões de imigrantes que ajudaram a formar a identidade brasileira. Lembrar daqueles que continuam chegando e suportando condições sub humanas nos porões do Bom Retiro, nas oficinas que abastecem o mercado de confecções. Ou dos migrantes que ainda, no século 21, são obrigados a conviver com o preconceito, mesmo que vendam a baixo preço sua força de trabalho para o agigantamento da metrópole. Um verdadeiro efeito de distanciamento ocorreu quando de minha visita ao Museu do Cortiço de Nova York com seu jogo teatral – ao olhar o lugar-outro, o homem-outro e o outro tempo pude reconhecer neles quem eu sou e do que sou constituída.

* * * 

O Museu dispõe de um ótimo site. Clicando em “Play” e, depois, em “Immigration game”, por exemplo, podemos simular a imigração realizada há mais de um século, com a ajuda de Victoria Confino. Divirtam-se.



Adélia Nicolete


5 comentários:

  1. Elaine Perli Bombicini19 de maio de 2013 às 20:37

    Adélia!
    aproveitei a viagem! que delícia de postagem, viajamos juntos, imaginamos juntos, jogan=mos também com nossa memória que opaca recebe luz e sons à medida que nos entregamos a essa possibilidade de relembrar a nossa chegada aos dias de hoje. Imagino vivenciar isso e ter a oportunidade de ter uma avançada percepção e análise, dado o teor da pesquisa! Fico no querer imaginar: sons e ruídos, odores, estalos, tecidos, tramas, texturas ....Que delícia, com mais tempo acessarei o link e depois te conto as impressões. Assim é bom viajar! abraços, Elaine Bombicini

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  2. Querida, obrigada pela visita e pelo comentário. Tenho certeza de que você, com a sua observação apuradíssima e a sua imaginação, iria aproveitar bastante a visita/jogo ao museu.
    Inclua nos seus planos de viagem um passeio pelo bairro. Por fugir aos padrões turísticos, ele descortina uma outra Manhattan, importante de se conhecer.
    Por enquanto viaje no site, que é pra se preparar!
    Um abração proce também!

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  3. De Camila Shunyata - via facebook:

    Fiquei arrepiada, ui! Emocionante ler sobre este projeto, belíssimo. O artigo redimensionou a pesquisa da Viola Spolin, que maravilhoso. As vezes lemos documentos, livros, mas não nos apropriamos profundamente sobre o que motivou tudo aquilo e passamos a tratar de aspectos daquele trabalho de forma superficial. Obrigada. Importante estarmos sempre porosos para rever, revisitar o que conhecemos um dia. Foi um bom despertar. O acolhimento proposto nesta visitação sintoniza-se bastante com o que procuramos estabelecer no espetáculo mesmo utilizando-nos de outros meios. Gostaria muito que o público se sentisse nessa intimidade com as velhas, no mesmo ambiente estabelecido pelas narrativas, descobrindo um pouco mais sobre sua história, como aconteceu com a gente... um bj

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  4. De Roberta Marcolin Garcia, via facebook:

    Roberta Marcolin Garcia Sim, Adélia!!! Estamos em sintonia. Que belo relato você escreveu, que experiência, grata por compartilhar. Incrível como o que você escreveu me tocou. Imagino a experiência em si... Viver para saber. Sinto que estamos num tempo em que podemos lançar mão de mais conexões, entre ideias, ações, propostas, entre gente de fazeres diferentes... Enfim, as ações podem ser mais conectadas. Sermos mais criativos com recursos tão simples para ressignificar nossa memória, como tão bem o está fazendo esta proposta do Tenement Museum. Sempre bom saber que tem gente muito curiosa e que leva seus sonhos adiante com ações como esta, tão simples e profunda. Ler sobre um Museu que abriga e concretiza uma proposta como esta nos inspira a movimentar. A nos reinventar... Um Museu pode dançar com uma proposta teatral, assim como o teatro pode brincar com suas personagens num Museu. E com certeza, a nossa pequena experiência junto ao Museu de Santo André, com o grupo Pontos de Fiandeiras, desde o ano passado, vem nos instigando a pensar como é que podemos tornar essa parceira mais constante... Mais instigante! O fio já foi puxado!

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  5. Camila e Roberta, o ambiente criado no "Ponto segredo" e a acolhida das tres velhas é realmente parecido com a acolhida no Tenement. Propomos uma volta ao passado pela via da afetividade, capaz de abrir as portas para os aspectos políticos e sociológicos de que tratamos. Tambem me lembrei da ação do grupo no nosso Museu e penso, como voces, que essa experiencia pode ser ampliada, aprofundada e ganhar outras localidades. Mesmo que tratemos do ABC, há muitos elementos que são comuns a diversas regiões - as cores, os sons, os cheiros, as imagens... Acho que vale a pena investir nessa proposta. Um beijão proces e obrigada pelos comentários.

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