terça-feira, 13 de julho de 2010

Coralidade - Parte I







A coralidade se mostra dos recursos mais utilizados na dramaturgia contemporânea, nosso objeto de estudo. O texto abaixo, em duas partes, é a tradução feita por Mônica dos Santos de um artigo publicado no livro Nouveaux territoires du dialogue, cuja referência encontra-se no final do post.


"Há termos que se tornaram indispensáveis à crítica e que os dicionários de retórica ainda ignoram: a coralidade é um deles. No espaço de vinte anos, esta noção exposta primeiramente por Jean-Pierre Sarrazac em L’avenir du drame em 1981, é pouco a pouco imposta como uma ferramenta de análise indispensável de textos dramáticos, assim como de muitos espetáculos contemporâneos; ao ponto de uma rica edição de Altenatives théâtrales de março de 2003 ter sido consagrada a este temai: sua leitura permite mensurar a amplitude de problemas abordados por esta noção e as contradições que ela coloca. Tentar circundar seu conteúdo ou delimitar seu campo de aplicação impõe certamente cruzar muitos domínios de conhecimento e diferentes abordagens teóricas e técnicas, o que é a fonte principal das dificuldades e da riqueza de seu emprego. Deste modo, é possível, para abordar a coralidade, associar história das artes do espetáculo e retórica do drama contemporâneo, e até mesmo questionar o futuro pós-dramático do drama: interessa-nos então a literatura dramática e o lugar do texto na paisagem teatral contemporânea. Mas recorrer à noção de coralidade pode também servir para qualificar e explorar estéticas híbridas, próximas da instalação, que não se apóiam mais que sumariamente sobre textos ([Bob] Wilson, [François] Tanguy, [Romeo] Castellucci). Enfim, pensar o teatro sob o ângulo da coralidade convida a explorar a ligação entre literatura e filosofia pelo viés da questão comunitária. Outras pistas podem ser relacionadas aos três domínios esboçados a seguir. Citamos a questão retórica, ainda pouco explorada, da liricizaçãoii do drama pela função do coro; sociológica, do tropismo ritual, ou cerimonialista, que se observa nas cenas contemporâneas (notadamente desde [Jean] Genet), enfim, filosófica, dos vínculos do drama e da história: a coralidade nasce onde o coro não é suficiente, por diversas razões ainda não determinadas (fim das utopias e das ideologias, dissolução da comunidade nas comunidades) e instala-se nas cenas ocidentais de modo permanente. É inevitável que a coralidade, transformada na mais nova peça chave do xadrez crítico do drama contemporâneo, tenha os contornos de seu campo de aplicação difíceis de delimitar. Aparece então o risco de uma profusão asfixiante e a necessidade de fixar seus conteúdos: a minima, entende-se por coralidade esta disposição particular das vozes que não dá destaque nem ao diálogo, nem ao monólogo; que requerendo uma pluralidade (um mínimo de duas vozes), contorna os princípios do dialogismo, sobretudo reciprocidade e fluidez dos encadeamentos, em benefício de uma retórica da dispersão (atomização, parataxeiii, explosão) ou do entrelaçamento de diferentes cantos que se respondem musicalmente (étoilementiv, sobreposição, ecos, todos efeitos da polifonia). O termo é útil em pontuar uma maneira, que varia segundo cada autor, de suprimir as falhas do diálogo: evocar a coralidade de um dispositivo, é sobretudo encará-lo sob o ângulo da difração das palavras e das vozes num conjunto refratário a toda totalização estilística, estética ou simbólica. Neste sentido, a coralidade é o inverso do coro. Ela postula a discordância, quando o coro - ao menos como o entendiam os gregos - carrega sempre, de modo mais ou menos explícito, o traço de um idealismo do uníssono.


Entretanto, do ponto de vista do desenrolar do tempo, a coralidade interpreta dentro do tecido dramático um papel próximo daquele que outrora tivera o coro do teatro. Ela produz diversos efeitos sobre a temporalidade dramática: retardando o desenrolar do diálogo como veículo da ação, ela impõe uma modalidade temporal suspensiva por excelência, mesmo se variações de ordem diversas podem neste aspecto ser observadas. A noção é então particularmente empregada desde o oximóricov “drama estático” de [Maurice] Maeterlinck. Se ela se aplica de maneira eficaz às formas dramáticas modernas desde que o drama entrou em crise, ela é dificilmente dissociável da estética do fragmento e das diferentes modelizações da forma aberta: redução, isto é, o desaparecimento da tríade exposição-conflito-desfecho em benefício de uma retórica da disseminação, da microestrutura ou da composição em quadros. O terreno expressionista é particularmente propício às florescências corais. Mas parece difícil assinalar o ato do nascimento da coralidade na história das formas dramáticas: tratar-se-ia , de preferência, de uma tendência, cada vez mais apoiada historicamente, de fazer variar o diálogo em todos os tipos de figuras que se assemelham ao étoilement ([Maurice] Maeterlinck, Les aveugles), à dispersão aleatória ([Philippe] Minyana, Les Guerriers), à serialização ([Valère] Novarina), a uma disposição em escala das vozes ([Michel] Vinaver)."


Notas:

i “Choralités”, Alternatives théâtrales, nº76-77, Bruxelles, 1° e 2° trimestres de 2003.

ii NT. Apesar do termo no francês ser lirisation optamos por empregar liricização do verbo liricar que é o mais próximo que existe em português.

iii NT. Segundo o dicionário Houaiss: “Sequência de frases justapostas sem conjunção coordenativa”.

ivNT. Termo ainda em tradução. Possível sentido de "estrelamento": extensão de uma forma central em raios que lembram uma estrela, ou simplesmente, em forma de estrela.

v NT. Segundo Houaiss: Figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a expressão (por exemplo, obscura claridade, música silenciosa)


MÉGEVAND, Martin. Choralité. In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org)Nouveaux territoires du dialogue. Arles : Actes Sud-Papiers, 2005. p. 36-40. (tradução de Mônica dos Santos)


(A ilustração deste post é uma foto do espetáculo Suíte nº 1, de Philippe Minyana, encenado pela curitibana ompanhia Brasileira de Teatro, com direção de Márcio Abreu)

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