quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Engenho e arte – parte I





Carina Freitas, ao comentar o post anterior (sobre as diversas versões de uma história) tece algumas palavras sobre o vídeo sugerido e, em seguida, recomenda a apreciação de dois filmes do norte-americano Clint Eastwood. Do comentário feito pela colega destacarei dois pontos que considero de especial interesse em nossas reflexões sobre dramaturgia e arte.


O primeiro deles é sobre o vídeo da escritora nigeriana. Depois de assisti-lo Carina conclui que “qualquer história é parcial, porque escolhemos o que contar e priorizamos os aspectos mais felizes ou mais tristes de acordo com o resultado que buscamos obter.”


Esta afirmação, aparentemente óbvia, é uma das bases do fazer artístico. Nela a colega considera, de imediato, os três elementos fundamentais envolvidos na comunicação: o artista, a mensagem e o público. Alguém que deseje comunicar algo deve levar em consideração a quem se destina a mensagem. Para isso é necessário todo um processo, toda uma construção, que vise à melhor maneira de se conseguir seu objetivo. Nessa construção é que residem a técnica, o estudo, a pesquisa, o engenho e a verdadeira arte – e alguns dos verbos utilizados foram apontados pela Carina: escolher, priorizar, buscar, por exemplo.


Mesmo diante de uma obra que nos pareça “verossímil” ou até “real” é preciso lembrar que por trás daquela verossimilhança existe todo um processo de escolha de ponto de vista, seleção de materiais, exclusão de dados e um sem número de ações efetivadas pelo artista em busca do objetivo “naturalista”. No caso do teatro essa busca é também realizada pelos intérpretes na medida em que selecionam a melhor entonação, o gesto mais adequado; ou pelo cenógrafo e demais artífices da cena. Portanto, não se trata de mera “cópia” de situações reais. A arte está em fazer parecer “real”. Logo, se trata de uma “verdade” construída pelo autor para que pareça verdade e, como bônus, cause determinadas reações no público. Porque, não custa lembrar, muitas das reações estão previstas (ou ao menos presumidas) durante a elaboração da obra. Para isso levam-se em conta fatores culturais, simbólicos, psicológicos, emocionais e tantos outros.


Nosso foco atualmente é a dramaturgia de contornos não mais dramáticos. Nesses casos não há mais a preocupação com a verossimilhança, com a “verdade” da cena – pelo menos não a verdade naturalista. O que se tem buscado, em grande parte dos textos (e, consequentemente, das encenações) é a verdade presente, intrínseca à situação criada, que pode não ter semelhança com a realidade física, mas o tem com as vivências emocionais, psicológicas, conceituais. Neste caso o trabalho do autor será o mesmo assinalado pela Carina: seleção dos elementos mais adequados ao seu objetivo de comunicação.


Outro aspecto que pretendo salientar nesses apontamentos sobre a construção dramática é que precisamos desmistificar o ofício do artista. Durante séculos cultivaram-se os mitos da inspiração e do talento como fundamentais para a criação da obra de arte. Fruto, de certa forma, do desprezo ao trabalho, o culto à inspiração e ao talento determinavam que para ser escritor ou dramaturgo, por exemplo, não era necessário estudar. Os artistas nasceriam prontos e deveriam apenas cultivar o talento inato e abrir-se às musas inspiradoras.

E essa ideia retorna a cada vez que escrevemos algo e nos recusamos a rever, avaliar, depurar, reescrever – como se tivesse ocorrido uma espécie de psicografia. Quando despejamos sobre o leitor ou espectador uma escrita transbordada do nosso imenso talento, sem revisão, sem o apuro que caracteriza mais categoricamente o fazer artístico.


Não quero com isso desconsiderar a inspiração. A poeta Adélia Prado declarou diversas vezes que a primeira versão de seus poemas é quase sempre um jorro, fruto de pura inspiração. Acontece que depois de um tempo de “repouso” aquelas palavras são “lavradas”, “penteadas” e se transformam em verdadeira poesia. Isso nos remete à inspiração dionisíaca e à arquitetura apolínea, ou seja, ambos os aspectos são necessários quando se trata da criação.


(Adélia Nicolete)


A ilustração deste post é a tela que retrata o quarto de Van Gogh. Sobre ela o pintor escreve, a respeito de suas intenções em relação ao público; “Eu tinha uma nova ideia em minha cabeça e aqui está o seu esboço...desta vez, trata-se simplesmente do meu quarto, só que a cor se encarregará de tudo, insuflando, por sua simplificação, um estilo mais impressivo às coisas e uma sugestão de repouso ou de sono em geral. Numa palavra, contemplar o quadro deve ser repousante para o cérebro, ou melhor dizendo, para a imaginação”.

Um comentário:

  1. Adélia,
    inspiração e repouso... dentro das artes plásticas, no tempo que participei ativamente do ateliê do Artur Coli, tínhamos uma maneira simplista de falar sobre alguns trabalhos: "está no teleiro", que era um grande porta telas onde depois de um momento de criação, ou o oposto, de ócio com as tintas e pincéis, deixavámos a obra em repouso, as cores vinham após a secagem, mais intensas, mudanças significativas nos matizes, nos davam a possibilidade de retomar e rever, pintar novamente, cobrir lacunas, explodir com novas tentativas e explorar caminhos. Foi um aprendizado muito produtivo. Comento sobre isso pois acredito realmente que esse é o caminho, nutrimos a alma com o movimento e com a pausa, o acabamento decorre e a virtude do material, retomado(seja na escrita, na tela, na musica...) vem à tona.
    REver e ver novamente...um treino à paciência e à perseverança, ao ato criativo.

    saudações, Elaine.

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