Peço licença aos participantes e leitores desse blog para, eu mesma, me arriscar no ateliê.
Hoje, 8 de abril de 2011, me propus uma apreciação um pouco diferente. Em vez de uma obra, uma exposição. E não uma exposição apenas, um evento.
Um evento que começou quando coloquei os pés pra fora da estação do metrô Clínicas, desci a rua Teodoro Sampaio, vi a exposição de Fernando Burjato na Galeria Virgílio, continuei descendo a rua, tomei o metrô novamente na estação Faria Lima e só terminou quando coloquei os pés no trem, da estação Tamanduateí, de volta pra casa.
Me propus a apreciação (que segue em forma de anotações nesta postagem) e a criação de um texto (que segue na postagem seguinte), exatamente como fazemos no ateliê.
As obras que ilustram essa postagem são de Burjato, paranaense de 39 anos, radicado em São Paulo. O artista faz mestrado na UNESP, onde tive o prazer de conhecê-lo e, a partir de então, trocar figurinhas sobre artes plásticas.
8 DE ABRIL DE 2011
Notas de um evento
- A rua começa num hospital e num cemitério – doença e morte. É tão longa que muda de personalidade conforme desce: instrumentos musicais, móveis, roupas, sapatos
- Entro numa loja de livros e é como um portal. Mergulhos que nos desviam. Sumidouros.
- A exposição está integrada ao trajeto – no meio da Teodoro ela se esconde
- Tintas que escorrem pelas bordas, mostrando as camadas e a espessura das cores
- Lembro das cores de Albers
- Lembro dos plásticos coloridos que colocávamos na frente das tevês preto e branco
- Dá para perceber as pinceladas e os depósitos de texturas entre uma camada e outra
- Nos repousos, no escuro, resíduos se depositam na tinta e não conseguem se soltar mais. No dia seguinte nova camada. Asfalto.
- Quantos verdes para se chegar a este Verde?
- Experimentos de cores e sensações
- Materialidade
- E se pudéssemos descascar as telas? Camada por camada, numa espécie de flashback. Que segredos estariam ali contidos?
- Há uma tela magenta (Púrpura? Fúcsia? Vinho? Grená?) que guarda traços antepassados: caminhos, vestígios, placas tectônicas. É como a pele.
- Cores que se irmanam.
- Cores que têm de se suportar, uma ao lado da outra. Que se confundem, se mesclam
- A tela menor lembra aquelas máquinas de pintura dos parques de diversão. A gente joga as tintas e a máquina gira, gira, gira, gira e a tinta junto, formando círculos de cores indefinidas
- Estação Faria Lima: entro e me sinto em Londres – lapso de tempo
- Esteiras do metrô Paulista – paralelas em direções diferentes, como as telas do Fernando - tiras mudam de cor, gradações, como a esteira rolante
- Modernidades
- A exposição é o trajeto / O trajeto é a exposição / A exposição e o trajeto
- Pavimentação das ruas e das telas: detritos, dejetos
- Tela: rua em miniatura, acesso a desconhecidos
- As listras das telas nas paredes das estações
- As cores que convivem como pessoas
- Alguém toca piano na estação Tamanduateí. As teclas são as tiras das telas. Os sons são as cores.
Ok... Entendi direitinho. Meu mundo se move por imagens e às vezes, saio captando por ai algumas coisas. Aconteceu que, nesse dia algo raro e complexo ocorreu, minha câmera disse não.
ResponderExcluirE eu não a fotografei, eu a resolvi seguir. É eu entendi direitinho. Ela desceu ali naquela estação do centro, numa rua longa, uma rua complexa. Atenta, com o olhar que costumo ter quando observo o mundo como “fotografante”. Parecia absorver no ar as partículas mais suspensas.
Caminhei com certa distância e fui acompanhando. Entrou na livraria, pegou um livro, viu a dura capa e tive a impressão que o peso do livro foi o ponto para que não o comprasse agora, mas que mais adiante numa outra oportunidade ela o levaria para casa. Saiu tomou um gole d’água e seguiu, mais à frente sacou uma cadernetinha e simpática encostou-se numa base de concreto e anotou algumas coisas. Minha mente curiosa ficou mais aguçada ainda. O que será que anota?
Olhou ao redor, mas não me viu. Que alívio. Isso me desviaria e perderia a razão de minha observação. Respirou, admirou ao redor e seguiu.
Entrou numa espécie de exposição, vi ali os quadros e resisti o quanto pude, mas de fora eu via suas ações e queria me juntar. Mas quando observamos, não podemos interferir. Não podemos querer distorcer nossa maior emoção. Mantive uma distancia confortável para ela e também para mim e ali fiquei. Anotava.
Olhava o quadro, fitava por segundos, aproximava os olhos da tela, uma hora vi que passou a língua nos lábios como se saboreando as camadas. Quando saiu de frente aquela tela , fui para o seu lugar. Ali fiquei. De fato eram tantas cores que me deu vontade de morder a tela, mas seria mais que intervenção, seria um atentado a obra. Mastiguei um caramelo e percebi que continuava anotando, de seus dedos saiam luzes, era como houvesse se apossado de algo da obra que agora falava por si, pela escrita. Pensei que poderia ser professora, ou poeta, ou ainda alguém que tem febre pelas letras como eu tenho pelas imagens. Aproveitei esse momento e me aproximei, com cuidado, mas o transe era focado, pude ver sua letra correndo azul sobre o papel, uma letra linda, ágil, definida. Não me demorei muito, mas pude ver o quanto de personalidade marcante ela possuía.
Afastei-me devagar, sempre com o cuidado de não interferir. Aos poucos foi relaxando as mãos, que ficaram mais longas e suaves. Acariciou o caderno como quem acaba de anotar um tesouro, e assim delicada ficou como em êxtase, esperando o ritmo do coração voltar ao normal, assim como as cores de sua face, que agora mais rubras, sorriam.
Dou-me conta de quantas incríveis fotos eu perdera, mas existem momentos que câmeras devem mesmo dizer não e que a retina, esta sim, deve guardar a poesia e a construção de algo que se vai parir depois. Assim como ela, ali, absorta, mudava mundos internos e acomodava as cores viventes no seu peito, mesclando sal, do suor e das lágrimas.
Encerra a visita colocando fones de ouvido, seus dedos teclam sobre as pernas. Talvez o que ouça agora seja música ao piano, tecla acompanhando o ritmo. Levanta e saí rapidamente. Se perde em meio da multidão e eu sigo imaginando como poderia se chamar tal pessoa. (Elaine Perli Bombicini)
Jésus! Você estava lá!
ResponderExcluirA não ser pela letra linda e os fones de ouvido, podia jurar que você me seguiu, já que estava de volta do Chile!
Que texto, como as telas, cheio de camadas, Lan! Nele vejo você, eu, a prática do ateliê, as obras de arte que apreciamos, a apreciação em si, a observação de mundo de fora e de dentro, realidade e ficção, o contemporâneo, o Calvino-visualizador o Cortázar-perseguidor.
Isso não é texto pra comentário, mas pra postagem! Trate de colocá-lo num lugar de honra no seu Projetos Portáteis, assim o povo lê em dois lugares!
Mil beijos!
Quem te garante que não estava??!rs
ResponderExcluirEu confesso que conflitei antes de postá-lo pois não queria tirar a beleza do encontro, mas não resisti. Me sinto muito feliz por voce ter gostado, eu só funciono à base de desafios e necessito retornos e esse teu me fez chorar e muito, sabe aquele choro de marias e clarices e iracemas...
Ando muito sensível. Eu postarei, mas preciso de uma foto nossa, quem sabe hoje na livraria faremos uma para posteridade e para o Portátil.
Quando olho o teu processo de trabalho nesses 2 ultimos anos, fico assim, observadora. tanto trabalho, é admirável e para que eu o tenha em mim precisava resumí-lo e o "Evento" me permitiu. Eu acho que essa moça do texto é parente do Carteiro Humberto, aquele queria cartas de amor. Só que ela já virou realidade, ela é um presente PRESENTE. Ela evoca um futuro, que vem correndo ao encontro dos que por ela passam. Passagem!
Olá, Adélia, Olá Elaine
ResponderExcluirPassar por aqui e acompanhá-las (e aos demais) é um acontecimento para (todos) os sentidos. Este diálogo é a mais perfeita prova de um encontro de inteligências e sensibilidades.
abraço forte da leitora
dalila teles veras