quarta-feira, 8 de maio de 2013

O "Living Theatre" que eu vivi





Tenho amigos que assistiram aos primeiros espetáculos do Arena e do Oficina, que estiveram na plateia d'O balcão e do Cemitério de automóveis. Outros que assistiram várias vezes Trate-me leão e as performances dos Dzi Croquetes. Nenhum deles, porém, é da minha geração. O único acesso que temos a esses grupos e espetáculos emblemáticos é por meio das pesquisas, não da experiência concreta.

Assim também em relação ao Living Theatre. Minhas pesquisas sobre a criação coletiva levaram-me a esse grupo norte-americano fundado por Julian Beck e Judith Malina. Constituiu-se toda uma aura em torno de seus ideais e propostas, suas vindas ao Brasil - que renderam, inclusive, a prisão de Malina, acusada de porte de drogas (desse período na prisão resultou um livro da diretora) –, a influência que exerciam onde quer que apresentassem seu trabalho e a sua importância para o teatro contemporâneo. Para mim, o Living Theatre era um grupo do passado, a que eu não teria mais acesso a não ser por meio de vídeos na internet e do relato dos amigos. Até ir a Nova York e assistir ao encerramento da temporada de seu mais recente trabalho: Here we are. É sobre essa “experiência concreta” que pretendo falar nessa postagem.

* * *

As últimas apresentações seriam no Flamboyánt Theater, espaço multifuncional localizado em uma espécie de centro cultural no Lower East Side, bairro afastado do centro - lembremos que o início do movimento off-Bradway costuma ser atribuído ao Living Theatre, nos anos 1950. A sede do grupo, próxima dali, está para ser desativada devido à falta de recursos. Embora Al Pacino e Yoko Ono, entre outros, tenham feito doações e participado de campanhas em prol do grupo, não há como manter o espaço e a trupe foi despejada de lá no final de fevereiro.

Comprei os ingressos ainda no Brasil e antes de viajar dei uma olhada nos comentários a respeito do espetáculo. Tiraríamos os sapatos, teríamos os olhos vendados e seríamos orientados pelos atores a fazer movimentos, criar coreografias e textos, confeccionar sandálias e dançar flamenco, repetindo slogans de protesto contra o capitalismo e a opressão. Essas poucas informações, somadas ao espírito de transgressão que sempre acompanhou o grupo bastaram para que eu fantasiasse uma vivência semelhante à dos meus amigos da década de 70.


Here we are
Foto: Kendall Rodriguez


A aura pode ser um bom tema para começar a descrever minha experiência. Todo o imaginário que se agrega a determinada obra ou artista, os depoimentos a seu respeito, as críticas, a sua importância em determinado período, a sua permanência na memória e o quão canônica tornou-se a sua atuação vão, aos poucos, constituindo a referida aura. Em muitos casos, é com ela que nos relacionamos e não com os artistas ou o trabalho, relacionamo-nos com o “valor agregado” que o tempo ou a mídia atribuiu a eles. Pois bem, foi com a aura do Living Theatre que eu primeiro me deparei ao entrar naquela sala preta, despojada, com algumas cadeiras distribuídas pelos quatro lados da cena. A emoção que senti nasceu da expectativa de viver, eu também, uma parcela do meu tempo em comunhão com aquele coletivo. Emoção que nasceu também do acaso de estar em Nova York, 66 anos após a criação do grupo, presenciando justamente o seu noticiado encerramento.

Dos quinze performers, incluindo os músicos, apenas dois estão na faixa acima dos 40 anos. Eles vem da América Latina, da Europa e de outros estados norte-americanos com o objetivo de estudar teatro em Nova York e passar pelo Living Theatre Ensemble ainda é considerado um estágio significativo. Judith Malina, agora com 87 anos, é a dramaturga e diretora de Here we are. Ela está com dificuldades para se locomover, não escuta lá muito bem, mas acompanhou a temporada sempre que pôde, bradando seu texto: “Julian Beck said 'I am a prisoner dreaming of escape!”. É justamente disso que trata o espetáculo, das prisões do sistema capitalista e das manifestações anarquistas na Europa.



Here we are
Foto: autor não identificado


O espaço cênico é um retângulo ao rés do chão. Três de seus lados são cercados por cadeiras e o quarto abriga uma pequena plataforma para a banda. Três praticáveis móveis cumprem uma série de funções e, a certa altura, representam França, Ucrânia e Espanha - o pensamento, o trabalho e a dança, de acordo com Malina.

O espectador é gentilmente convidado a participar da cena. Uma hora seguimos os movimentos dos atores, mais adiante damos nossa opinião acerca das eleições, cantamos, dançamos, criamos e declamamos um poema e confeccionamos nossas próprias sandálias artesanais, que levamos conosco ao final da sessão: “Made in the performance of Here We Are at The Living Theatre March 2013”. Trata-se de uma criação nos moldes épicos, reafirmando a proposição da diretora, ex-aluna de Piscator – um grande tema desenvolvido em vários blocos, cada um deles propondo uma abordagem diferente. Há uma intensa participação coral, entremeada por palavras de ordem, narrativas, canções e trechos dirigidos ao espectador, onde se percebe claramente a força do coletivo: todos os intérpretes são muito bons, mas a nenhum é reservado o protagonismo. Representam os trabalhadores, anônimos, que atravessaram os tempos arrastando os praticáveis do capitalismo. Ao recordar a luta daqueles que vieram antes de nós, o grupo sugere que busquemos nela a força para as transformações futuras. Por isso, o flamenco que encerra a noite pretende-se uma festa, um ritual de integração entre os participantes, mas também de afirmação da força do teatro como potencializador dessas mudanças.

Em Here we are pensamos, trabalhamos e dançamos com o grupo, numa das performances mais poéticas que já assisti. Longe dos eventos impactantes de outrora, o grupo mantém sua postura, seu ideário, mas de forma singela, delicada e, nem por isso, menos potente. Passados 66 anos, a radicalidade é manter o teatro vivo.

 Judith Malina (segunda à esq.), Fabian Zarta (ator do grupo, segundo à direita)
Foto: arquivo pessoal

* * *

A manchete do jornal anunciava: “Living Theatre está morto; sua fundadora Judith Malina, que produziu Gertrude Stein e Bertolt Brecht, se aposenta”. Apenas mais duas apresentações do espetáculo, no final de março e, definitivamente, o grupo caminharia cada vez mais em direção ao passado. Perguntei a respeito a Tom Bradley, o componente mais antigo depois de Judith, e ele respondeu que existem planos de uma parte da companhia vir a São Paulo ministrar workshops. Perguntei à dramaturga-diretora se ela voltaria ao Brasil. Mesmo necessitando de apoio para se locomover e, segundo os jornais, mudando-se para um retiro de artistas em Nova Jersey, Judith mostrou-se animada: “sim, eu voltaria, se alguém financiasse a ida de todo o grupo para que apresentássemos o nosso espetáculo”.

Judith Malina
Foto: Kendall Rodriguez



Adélia Nicolete




8 comentários:

  1. Que delícia de primeira memória dessa sua nova viagem à campo. Um texto tão forte como às mãos de Judith e tão vivaz como a aura que ela oferece! Imagino o impacto na sua alma! Compartilhe mais, comparitlhe sempre!! Um beijo, Elaine

    ResponderExcluir
  2. Obrigada, Elaine. A velhinha continua ativa e briguenta, acredita?

    ResponderExcluir
  3. Que beleza! acho que esse blog vai dar o que falar, ah! sou um daqueles que viram o Balcão e Dzi Croquetes algumas vezes, beijos.

    ResponderExcluir
  4. Pára com isso, Samuel! Voce é mais novo que eu! rsrsrs

    ResponderExcluir
  5. Que bacana este relato, Adélia! Sinto aqui um cheirinho de "pós-doc". Será? (estudar e pesquisar vicia... mas meu pai dizia que faz mal pra vista - rss). Parabéns pela linda experiência e belo relato.

    ResponderExcluir
  6. Obrigada, minha querida blogueira Dalila. Esse é um tipo de experiência que precisa ser compartilhado, um tesouro a ser dividido com o maior número possível de amigos. Quanto ao pós-doc... depois da consulta ao oftalmo, te dou notícias. rsrs

    ResponderExcluir
  7. Adélia, só hoje pude ler o blog com a devida atenção e parar para comentar. O que você compartilhou, me fez morrer de vontade de estar lá com vc e confesso, bateu um arrependimento de não ter colocado New York nas minhas prioridades de viagem antes!
    O teatro é transitório... nossas pesquisas são transitórias assim como nossas vidas...tudo está em movimento. Ontem na rua, causando impacto político e artístico com suas performances. Hoje a poesia dentro de um espaço cede espaço ao silêncio ...
    Que venha o fim do The living theater mesmo, (com quase 90 anos talvez eu também quisesse descansar em um retiro em New Jersy. Rsrs) ! É digno ! Já contribuiram muito! Só temos que dizer: “Gratidão!”

    ResponderExcluir
  8. Juliane, creio que será difícil a Judith ir pra um asilo... Ano passado estreou um documentário sobre ela e, pelo que andei sabendo, já está divulgando o próximo espetáculo...
    O fato de terem desalojado o grupo da Clinton St. talvez não seja suficiente para acabar com ele. Por isso, vá programando a sua viagem. Quem sabe ela coincide com a estreia da nova montagem?
    Fora esse, há inúmeros outros motivos pra você conhecer NYC. Tenho certeza de que vai superar todas as suas expectativas em relação a cultura e arte.
    Um beijão e obrigada pela visita e pelo comentário. :)

    ResponderExcluir