Tenho amigos que assistiram aos
primeiros espetáculos do Arena e do Oficina, que estiveram na
plateia d'O balcão
e do Cemitério de automóveis.
Outros que assistiram várias vezes Trate-me
leão
e as performances dos Dzi
Croquetes. Nenhum
deles, porém, é da minha geração. O único acesso que temos a
esses grupos e espetáculos emblemáticos é por meio das pesquisas,
não da experiência concreta.
Assim
também em relação ao Living Theatre. Minhas pesquisas sobre a
criação coletiva levaram-me a esse grupo norte-americano fundado
por Julian Beck e Judith Malina. Constituiu-se toda uma aura em torno
de seus ideais e propostas, suas vindas ao Brasil - que renderam,
inclusive, a prisão de Malina, acusada de porte de drogas (desse
período na prisão resultou um livro da diretora) –, a influência
que exerciam onde quer que apresentassem seu trabalho e a sua
importância para o teatro contemporâneo. Para mim, o Living Theatre
era um grupo do passado, a que eu não teria mais acesso a não ser
por meio de vídeos na internet e do relato dos amigos. Até ir a
Nova York e assistir ao encerramento da temporada de seu mais recente
trabalho: Here we are.
É sobre essa “experiência concreta” que pretendo falar nessa postagem.
* * *
As últimas apresentações
seriam no Flamboyánt Theater, espaço multifuncional localizado em
uma espécie de centro cultural no Lower East Side, bairro afastado
do centro - lembremos que o início do movimento off-Bradway costuma
ser atribuído ao Living Theatre, nos anos 1950. A sede do grupo,
próxima dali, está para ser desativada devido à falta de recursos.
Embora Al Pacino e Yoko Ono, entre outros, tenham feito doações e
participado de campanhas em prol do grupo, não há como manter o
espaço e a trupe foi despejada de lá no final de fevereiro.
Comprei os ingressos ainda
no Brasil e antes de viajar dei uma olhada nos comentários a
respeito do espetáculo. Tiraríamos os sapatos, teríamos os olhos
vendados e seríamos orientados pelos atores a fazer movimentos,
criar coreografias e textos, confeccionar sandálias e dançar
flamenco, repetindo slogans
de protesto contra o capitalismo e a opressão. Essas poucas
informações, somadas ao espírito de transgressão que sempre
acompanhou o grupo bastaram para que eu fantasiasse uma vivência
semelhante à dos meus amigos da década de 70.
Here we are
Foto: Kendall Rodriguez
A aura pode ser um bom tema
para começar a descrever minha experiência. Todo o imaginário que
se agrega a determinada obra ou artista, os depoimentos a seu
respeito, as críticas, a sua importância em determinado período, a
sua permanência na memória e o quão canônica tornou-se a sua
atuação vão, aos poucos, constituindo a referida aura. Em muitos
casos, é com ela que nos relacionamos e não com os artistas ou o
trabalho, relacionamo-nos com o “valor agregado” que o tempo ou a
mídia atribuiu a eles. Pois bem, foi com a aura do Living Theatre
que eu primeiro me deparei ao entrar naquela sala preta, despojada,
com algumas cadeiras distribuídas pelos quatro lados da cena. A
emoção que senti nasceu da expectativa de viver, eu também, uma
parcela do meu tempo em comunhão com aquele coletivo. Emoção que
nasceu também do acaso de estar em Nova York, 66 anos após a
criação do grupo, presenciando justamente o seu noticiado
encerramento.
Dos quinze performers,
incluindo os músicos, apenas dois estão na faixa acima dos 40 anos.
Eles vem da América Latina, da Europa e de outros estados
norte-americanos com o objetivo de estudar teatro em Nova York e
passar pelo Living Theatre Ensemble ainda é considerado um estágio
significativo. Judith Malina, agora com
87 anos, é a dramaturga e diretora de Here
we are. Ela
está com dificuldades para se locomover, não escuta lá muito bem,
mas acompanhou a temporada sempre que pôde, bradando seu texto:
“Julian Beck said 'I am a prisoner dreaming of escape!”. É
justamente disso que trata o espetáculo, das prisões do sistema
capitalista e das manifestações anarquistas na Europa.
Here we are
Foto: autor não identificado
O
espaço cênico é um retângulo ao rés do chão. Três de seus
lados são cercados por cadeiras e o quarto abriga uma pequena
plataforma para a banda. Três praticáveis móveis cumprem uma série
de funções e, a certa altura, representam
França, Ucrânia e Espanha - o pensamento, o trabalho e a dança,
de acordo com Malina.
O
espectador é gentilmente convidado a participar da cena. Uma hora
seguimos os movimentos dos atores, mais adiante damos nossa opinião
acerca das eleições, cantamos, dançamos, criamos e declamamos um
poema e confeccionamos nossas próprias sandálias artesanais, que
levamos conosco ao final da sessão: “Made
in the performance of Here We Are at The Living Theatre March 2013”.
Trata-se
de uma criação nos moldes épicos, reafirmando a proposição da
diretora, ex-aluna de Piscator – um grande tema desenvolvido em
vários blocos, cada um deles propondo uma abordagem diferente. Há
uma intensa participação coral, entremeada por palavras de ordem,
narrativas, canções e trechos dirigidos ao espectador, onde se
percebe claramente a força do coletivo: todos os intérpretes são
muito bons, mas a nenhum é reservado o protagonismo. Representam os
trabalhadores, anônimos, que atravessaram os tempos arrastando os
praticáveis do capitalismo. Ao recordar a luta daqueles que vieram
antes de nós, o grupo sugere que busquemos nela a força para as
transformações futuras. Por isso, o flamenco que encerra a noite
pretende-se uma festa, um ritual de integração entre os
participantes, mas também de afirmação da força do teatro como
potencializador dessas mudanças.
Em
Here we are pensamos,
trabalhamos e dançamos com o grupo, numa das performances mais
poéticas que já assisti. Longe dos eventos impactantes de outrora,
o grupo mantém sua postura, seu ideário, mas de forma singela,
delicada e, nem por isso, menos potente. Passados 66 anos, a
radicalidade é manter o teatro vivo.
Judith Malina (segunda à esq.), Fabian Zarta (ator do grupo, segundo à direita)
Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal
*
* *
A
manchete do jornal anunciava: “Living Theatre está morto; sua
fundadora Judith Malina, que produziu Gertrude Stein e Bertolt
Brecht, se aposenta”. Apenas mais duas apresentações do
espetáculo, no final de março e, definitivamente, o grupo
caminharia cada vez mais em direção ao passado. Perguntei a
respeito a Tom Bradley, o componente mais antigo depois de Judith, e
ele respondeu que existem planos de uma parte da companhia vir a São
Paulo ministrar workshops.
Perguntei à dramaturga-diretora se ela voltaria ao Brasil. Mesmo
necessitando de apoio para se locomover e, segundo os jornais,
mudando-se para um retiro de artistas em Nova Jersey, Judith
mostrou-se animada: “sim, eu voltaria, se alguém financiasse a ida
de todo o grupo para que apresentássemos o nosso espetáculo”.
Judith Malina
Foto: Kendall Rodriguez
Adélia Nicolete
Que delícia de primeira memória dessa sua nova viagem à campo. Um texto tão forte como às mãos de Judith e tão vivaz como a aura que ela oferece! Imagino o impacto na sua alma! Compartilhe mais, comparitlhe sempre!! Um beijo, Elaine
ResponderExcluirObrigada, Elaine. A velhinha continua ativa e briguenta, acredita?
ResponderExcluirQue beleza! acho que esse blog vai dar o que falar, ah! sou um daqueles que viram o Balcão e Dzi Croquetes algumas vezes, beijos.
ResponderExcluirPára com isso, Samuel! Voce é mais novo que eu! rsrsrs
ResponderExcluirQue bacana este relato, Adélia! Sinto aqui um cheirinho de "pós-doc". Será? (estudar e pesquisar vicia... mas meu pai dizia que faz mal pra vista - rss). Parabéns pela linda experiência e belo relato.
ResponderExcluirObrigada, minha querida blogueira Dalila. Esse é um tipo de experiência que precisa ser compartilhado, um tesouro a ser dividido com o maior número possível de amigos. Quanto ao pós-doc... depois da consulta ao oftalmo, te dou notícias. rsrs
ResponderExcluirAdélia, só hoje pude ler o blog com a devida atenção e parar para comentar. O que você compartilhou, me fez morrer de vontade de estar lá com vc e confesso, bateu um arrependimento de não ter colocado New York nas minhas prioridades de viagem antes!
ResponderExcluirO teatro é transitório... nossas pesquisas são transitórias assim como nossas vidas...tudo está em movimento. Ontem na rua, causando impacto político e artístico com suas performances. Hoje a poesia dentro de um espaço cede espaço ao silêncio ...
Que venha o fim do The living theater mesmo, (com quase 90 anos talvez eu também quisesse descansar em um retiro em New Jersy. Rsrs) ! É digno ! Já contribuiram muito! Só temos que dizer: “Gratidão!”
Juliane, creio que será difícil a Judith ir pra um asilo... Ano passado estreou um documentário sobre ela e, pelo que andei sabendo, já está divulgando o próximo espetáculo...
ResponderExcluirO fato de terem desalojado o grupo da Clinton St. talvez não seja suficiente para acabar com ele. Por isso, vá programando a sua viagem. Quem sabe ela coincide com a estreia da nova montagem?
Fora esse, há inúmeros outros motivos pra você conhecer NYC. Tenho certeza de que vai superar todas as suas expectativas em relação a cultura e arte.
Um beijão e obrigada pela visita e pelo comentário. :)