terça-feira, 6 de julho de 2010

As intensidades da vida



Duas postagens atrás comentávamos sobre algumas regras básicas para se conseguir um bom drama. Levantamos quatro delas, a partir de uma entrevista publicada no jornal Estadão com uma roteirista americana. Um dos comentários do post, feito por Carina Freitas, me fez lembrar de uma quinta regra de ouro: a intensificação das ações.


É como se naquele bloco de 90 minutos, que em média pode durar um espetáculo teatral, ou num episódio de série, ou num filme, não coubessem coisas dispensáveis, supérfluas. O que há de mais importante naquela ou naquelas trajetórias foi condensado para nossa apreciação. Na tragédia de Édipo Rei, para ficarmos com o exemplo mais conhecido, a peste é noticiada, a investigação é feita, o passado é revelado, o culpado se redime, as punições acontecem e ainda há fios a serem intensificados ou resolvidos nas próximas peças da trilogia tebana.


Carina reconhece que a vida é sorvida aos poucos - se fosse como nos filmes ou nos dramas será que suportaríamos tanta tensão?


Na vida a intensidade se dá, muitas vezes, ao longo do tempo. Não tem as urgências de um capítulo, nem a estratégia de blocos que devem terminar com um “gancho” que nos prenda até depois dos comerciais ou até o próximo episódio. Temos tempo para que um desejo se transforme em vontade, e mais tempo ainda pra virar realidade. Talvez por isso busquemos na arte e em algumas outras práticas essa intensidade momentânea que, paradoxalmente, nos lembra que estamos vivos.


Carina diz que as peças que lemos no ciclo são mais parecidas com a vida do que os episódios das séries. Talvez seja porque a dramaturgia contemporânea, daquela parcela dita não mais dramática, parece não se importar tanto com a regra da intensificação da ação. Ou parece trabalhá-la de outra maneira. A rotina ganha espaço na cena. O casal simplório de Alta Áustria, de Kroetz, mastiga seu dia a dia sem graça, que só se vê abalado com a possível chegada de um filho – quem sabe aí haverá intensidade. Há toda uma dramaturgia denominada “do cotidiano”, que busca revelar o que há de grandeza – ou de pequenez – nos atos mais simples. Essas peças nos servem também de espelho, como os grandes dramas. São uma espécie de oposição ao que prega a pós-modernidade: viver sem limites, arriscar-se, ousar, ser diferente, “original”.


Retornemos a Psicose 4h48, tão comentada nesse blog. Sua intensidade não está nas ações. Ela se situa em outro patamar. Psicose talvez nos seja próxima pelas articulações mentais, pelos desbordamentos emocionais, longe de caracteres (personagens) delineados, vontades articuladas, linhas de objetivo, superações e conclusões. Há uma intensidade do sofrimento que, aliada ao tratamento da linguagem e da forma, também nos prende e desperta compaixão.

Continuemos a refletir...


(Adélia Nicolete)

2 comentários:

  1. É interessante (re)lembrar, que em um dos estudos sobre Antonin Artaud, o querido poeta Claudio Willer, faz uma afirmação sobre a questão da intensidade no texto de Artaud, o poeta comenta também o caso da intensidade no cinema.
    Achei que a conclusão da Adélia ao falar de compaixão foi fantástica, ela faz recordar Campbell, que realizava profundas ligações e referências sobre o tema compaixão e mitologia.

    ResponderExcluir
  2. Realmente as intensidades são dosadas de acordo com o objetivo do texto dramático e a forma como será apresentada ao público. Nos seriados de televisão, no decorrer de 4 temporadas (que na nossa vida equivale a 4 anos) uma mesma personagem passa por diversas situações que, como a Adelia bem disse, seriam insuportáveis na vida real.
    No seriado Brothers & Sisters que eu acompanho, uma mesma personagem passou pela morte do pai, mudança de cidade, mudança de emprego, descoberta das traições do seu falecido pai, surgimento de 2 irmãos bastardos, seu proprio casamento, tentativas sem sucesso de engravidar, adoção, a descoberta de um cancer e a luta para sobreviver, o enfarto do marido e agora, no fim da 4ª. Temporada, seu marido morre em um acidente de carro. Ufa! Realmente é inimaginável.
    Mas quando você leva a rotina da vida real para o cinema ou para o teatro, ou apresenta os conflitos internos e individuais de uma personagem, o público “corre o risco” de encontrar a ele mesmo nos palcos. Porque a identificação que sentimos como público em relação a uma personagem de um drama épico, é muito diferente em relação as personagens de textos não dramáticos, se é que posso usar este termo.
    E aproveito para retomar a questão da formação de público, para que esta ficção possa apreciada pelo espectador. Será que conseguimos apreciar a beleza e a leveza de uma rotina simploria, do dia-a-dia sem surpresas, sem a obrigação de salvar o mundo ou derrotar dragões? Por que a cada dia que passa nos preocupamos menos com as miudezas da nossa vida diária, cada vez corremos mais, nos cansamos mais, abraçamos mais trabalho, e tudo isso sem as várias vitórias e a fé incansável na luta nos conflitos dos grandes dramas e sem o olhar desenvolvido para perceber a sutileza e a poesia da brisa no rosto e do cabelo ao vento.

    ResponderExcluir