sexta-feira, 4 de junho de 2010

Franz Xaver Kroetz


Outro autor estudado no Ciclo de Estudos da Dramaturgia Contemporânea foi o alemão Franz Xaver Kroetz. Dele analisamos Alta Áustria, e o texto abaixo é a tradução que fiz de parte de um artigo publicado no livro Nouveaux territoires du dialogue, cuja referência encontra-se no final do post.






FRANZ XAVER KROETZ
(Nascido em 1946)

Se, desde seus primeiros sintomas, a crise do diálogo é construída sobre a ideia de que as relações intersubjetivas e o uso plenamente eficaz da palavra já não bastam, Franz Xaver Kroetz tratou de articular esta problemática ao status social de suas personagens, marginais ou gente simples que ele denomina “sub-privilegiados”. Kroetz recusa igualmente o modelo político de um teatro em que a personagem popular demonstra um perfeito domínio do instrumental linguístico da elite, metafísico, de um teatro no qual a sujeição a essa linguagem constitui um dado humano em si. Influenciado por Marieluise Fleisser1 e Ödön von Horvárt2, a dramaturgia kroetziana liga diretamente a opressão social à alienação linguística. Toma lugar, então, na cena, aquele que o dramaturgo denomina “proletariado de pessoas privadas de palavra, resultado extremo do capitalismo da educação que, não contente em explorar suas vítimas, ainda reforça o 'silêncio' que se torna característico desses verdadeiros burros de carga.”3

Uma das especificidades do diálogo kroetziano reside, assim, no lugar exacerbado que o silêncio ocupa. Ele não remete mais a uma reserva de sentido rica o suficiente para dar suporte à explicitação, delimita, isso sim, as fronteiras contra as quais a palavra não cessa de tropeçar. Contra a convenção dramática da 'loquacidade', Kroetz elabora, com efeito, diálogos precários e “esburacados” onde o laconismo parece não tomar outra forma senão o mutismo radical, ou, no caso de rubricas extensas, quando somente o corpo pode exprimir satisfatoriamente o mal-estar das personagens. Dessa valorização do silêncio participa a invasão das 'pausas', 'tempo', 'longo tempo' e 'grandes intervalos' os quais Kroetz designa frequentemente a duração escrupulosamente cronometrada em suas rubricas. Este processo de dilatação explica, por exemplo, que o diálogo de Trabalho em domicílio, equivale, segundo o autor, a uma peça de teatro 'normal' de meia hora, mas deve durar 'noventa bons minutos'. Localizados nas falas ou entre elas, esses silêncios sublinham a impotência da palavra, seus empecilhos, seus bloqueios ou suas síncopes. Sendo assim, eles efetivamente travam a dinâmica dialógica, e os tradicionais 'interlocutores' dão lugar àqueles que Kroetz chama de 'surdos-mudos'.

Contudo, seria incorreto reduzir o empreendimento kroetziano de desconstrução do diálogo à hipertrofia de um ponto de suspensão4. Como um efeito dramático, o silêncio não se faz ouvir tão somente na ausência literal da palavra, mas também nos vazios que se revelam quando elas são proferidas. A inflação de um discurso indireto que não se percebe mais como tal (provérbios, slogans, lugares-comuns) se encarrega então de destacar o fenômeno de espoliamento linguístico a que são submetidos os sub-privilegiados. A palavra, longe de manifestar aquilo que é próprio da personagem, longe de exteriorizar sua interioridade, assinala uma expropriação, a interiorização de influências exteriores que ditam seu discurso: “cada um constrói a própria felicidade”, “quem procura acha” (Train de ferme), “antes comer bem que sonhar mal” (Alta Áustria)... Remetendo à imagem falaciosa de uma realidade sem história e sem classes, essas máximas emprestadas do senso comum são outros tantos véus que impedem a personagem de analisar seu lugar no mundo e de encarar as condições de sua transformação. A presença de frases de efeito e de expressões chiques participa igualmente dessa expropriação e provoca, pelos efeitos de estranhamento que produz, o abismo que separa a fraseologia dominante de seus usuários ocasionais.
(...)
Cegos às causas políticas de seus problemas, as personagens (mais frequentemente um homem e uma mulher) reproduzem entre si as relações sociais de opressão, recusando-se a reconhecer esse fenômeno, resistentes à sua formulação. No entanto essa resistência está inscrita no coração da escritura, de modo que o fosso que separa os protagonistas não cessa de produzir deslizamentos secretos, e o diálogo, trespassado por brechas e obstáculos, permite que surjam argumentos quase imperceptíveis que caberá ao espectador elucidar.

Certamente os procedimentos aqui anotados correspondem a um período circunscrito da obra de Kroetz. Depois de Concerto à la carte (1972), peça escrita na forma de rubrica e que marca o ponto alto de suas pesquisas em torno do silêncio, ele experimenta novas formas, como a da elaboração de uma dramaturgia que ele chama 'do primeiro passo', que se debruça sobre o duplo caminhar dos personagens rumo à tomada de consciência e à apropriação da língua (O ninho, 1974). Experimenta também a exploração de uma verborragia convulsiva e transbordante (Terras mortas, 1984). No entanto, são suas primeiras peças que encontraram mais eco no teatro contemporâneo na medida em que reformulam a questão complexa da representação dramática da palavra popular, e expõem um diálogo subordinado aos ditames ideológicos e às condições sociais que acabam por destitui-la de seus últimos poderes.

1Dramaturga e roteirista alemã (1901- 1974). (N.T.)
2Escritor e dramaturgo austro-húngaro (1901-1938) (N.T.)
3Como no original: “bêtes de somme”/burros de carga. Talvez no sentido de levar o capitalismo nas costas, mantê-lo por meio de seu trabalho, de seus sub-empregos.
4Suspensão entendida aqui como interrupção, adiamento, retardamento. (N.T.)


TALBOT, Armelle. Franz Xaver Kroetz (né em 1946). In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org) Nouveaux territoires du dialogue. Arles : Actes Sud-Papiers, 2005. p. 107-111. (tradução de Adélia Nicolete)

2 comentários:

  1. a discussao da ultima vez e este texto sao sensacionais pra pensar a dramaturgia contemporanea. Eu, pelo menos achei.

    outra coisa: o prognostico da josette feral sobre mais gente fazendo do que assistindo ao teatro fez pensar. E ai li neste domingo um ensaio do joao moreira salles na Folha (Ilustrissima) sobre pessoal das humanidades (muitos) e da ciencia(poucos) que vale a pena. Tem a ver, claro.

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  2. Li o ensaio do João, Alessandro. Realmente não deixa de ser um complemento à fala da Josette.
    Acho que ele tem razão em muitos aspectos, principalmente no que diz respeito ao estímulo à pesquisa. O que se vê, muitas vezes, é um pisar e repisar, em arte, no que já está sedimentado.

    Ainda nutrimos o preconceito de que as humanidades são mais fáceis, de que a arte é expressão. Esquecemos o quanto há (ou deve haver) também de organização, pesquisa, disciplina, dedicação, investimento, ensaio e erro - atributos normalmente ligados às ciências exatas!

    Finalmente, mas não concluindo nada, creio que são muitos os fatores que nos levam a fazer mais teatro que assistir. Fatores educacionais, culturais, econômicos, políticos. O fazer por fazer, pelo mero exercício, leva, no máximo ao auto-conhecimento e à socialização. (E que bom que se escolhe o teatro para isso!) Porém, se quisermos renovação artística, cultural e política, será preciso um outro modo de fazer - mesmo que o número de espectadores continue menor... cada vez menor...

    A peteca está no ar...

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