Foi impossível não relacionar a imagem à obra de Heiner Müller, de quem iniciamos análise de Mauser em nosso Ciclo de Estudos da Dramaturgia Contemporânea. Homens não são máquinas, ou não deveriam ser, porém a mão do soldado na peça de Müller era também seu revólver (e vice-versa), ele mesmo se tornara máquina de matar – descontrolada, inconsciente. A revolução, ela mesma, também se tornara máquina, refém de um modelo de conduta que não permite desvios, dilemas, ponderações, mudanças.
De certa forma o sistema de produção capitalista (já analisado em nossos estudos sobre a pós-modernidade, sobre B. Brecht e mesmo na leitura de Para acabar com o julgamento de Deus, de Antonin Artaud), é também um mecanismo a criar um contingente de homens-máquina. Segundo Lucas Mendes os operários chineses da empresa Foxcomm cumprem uma jornada de 11 horas diárias, por quase duas semanas sem folga. “Dormem nove em cada dormitório, mal sabem os nomes dos companheiros de quarto, só comem no bandejão da empresa. Qualquer tipo de lanche fora das horas de refeição é proibido.” O limite de hora extras na China é de 36 horas por mês, mas lá muitos fazem 112 horas. Tudo isso para receber US$ 1 por hora.
O jornalista acrescenta que “estas condições do capitalismo chinês parecem piores do que os das empresas inglesas descritas por Marx e Engels, aqueles dois críticos do capitalismo selvagem inglês do século 19.” Um dos casos de suicídio foi o de Ma Chiangquian, “que discutiu com o chefe e, como castigo, foi limpar privadas. Em depressão e absolutamente infeliz, saiu da fábrica pela janela do nono andar.”
O carrasco de Mauser não queria morrer. Condenado pelo tribunal da revolução suplicou pela vida (inutilmente), queria ter tempo de chegar ao conhecimento, de comprovar que a sua luta valeu a pena e a revolução foi vitoriosa. No caso dos operários chineses, a escolha pela morte pode ser encarada como um sacrifício pelos que ainda vivem. Para que possam (possamos) chegar ao (re)conhecimento de que “Homens não são maquinas, eles tem amor próprio”, dignidade, valores, princípios que precisam e devem ser respeitados.
Transcrevo abaixo íntegra de notícia publicada no site do jornal Folha de S. Paulo no dia 27 de maio último. Nela é possível identificar um enredo já pronto, que certamente despertaria ideias em Brecht e Müller:
"Mais um trabalhador da fabricante de eletrônicos Foxconn, de Taiwan, se suicidou, apenas horas após o presidente da empresa, Terry Gou, ter anunciado a introdução de benefícios aos funcionários da empresa.
De acordo com a agência de notícias Xinhua, o mais recente suicídio foi de um jovem de 23 anos, que trabalhava na Foxconn havia cerca de um ano e se atirou do sétimo andar do prédio onde ficava seu dormitório às 23h20 desta quarta-feira.
"Do ponto de vista científico, eu não estou confiante que vamos conseguir impedir todos os casos. Mas como um empregador responsável, temos de assumir a responsabilidade de impedir o maior número de casos possível", disse ele.
Gou disse aos jornalistas que estavam sendo instaladas redes para evitar que mais pessoas pulem para a morte.
Gou também disse que iria reajustar os salários dos funcionários nas próximas duas semanas e financiar a implementação de um hospital para fornecer terapias profissionais para os trabalhadores.
A companhia ressalta que apesar da publicidade negativa, todos os dias cerca de 8 mil pessoas se candidatam para trabalhar na empresa.
A Apple, que criou e vende os iPhones, disse que vai avaliar a forma como a Foxconn está lidando com a onda de suicídios e vai continuar inspecionando as fábricas onde seus produtos estão sendo manufaturados."
Heiner Müller nos propõe um diálogo com os mortos. Com isso ele vislumbra uma reflexão sobre o passado, seus fatos, personagens, obras, na tentativa de compreensão do presente e, quem sabe, sua transformação.
Essa sequência de suicídios ocorrida na China clama pelo diálogo. O silêncio desesperado daqueles operários é grito, alta voz, a incomodar e a pedir uma interlocução. No nosso caso, em forma de arte.
(Adélia Nicolete)
Isso gera uma grande reflexão, mas há de se comungar com os mortos para extrair a voz do ato suicida. Se for para ser transformado em mera máquina, prefiro sair voando pela janela, e cá entre nós, a força desse (s) ato (s)não será detida por meras redes. Alguns terão que ser os heróis em cena, para que se mude a rota, se transforme a causa e quem sabe para que se possa ouvir além. Muito interessante isso ocorrer justamente nesse período em que as notícias ficam envelhecidas rapidamente.
ResponderExcluirSaludos,
elaine