quarta-feira, 19 de maio de 2010

Beckett / Solange Dias


O post de hoje é a resposta de Solange Dias à carta publicada no post anterior "SOS Beckett":


Querida Mariana!

Não sei se você sabe, mas Beckett escreveu “Esperando Godot”, outra peça doida dele, em 1948. Depois dos horrores da 2a. Guerra Mundial, o que esperar do ser humano?

E hoje? Em tempos que pais jogam seus filhos pela janela e dão uma de desentendidos, em que os assaltos são realizados dentro de delegacias diante dos olhares patéticos dos policiais, o que esperar? O que é realmente absurdo?

Adoraríamos que os absurdos estivessem somente nas peças, nas ficções. Que fossem apenas loucuras da cabeça de algum escritor. Mas não é. O artista só revela, de maneira contundente, aquilo que nossos olhos teimam em não ver, aquilo que nossa alma teima em não aceitar, ou busca entender.

Sei porque a Adélia me pôs nesta roubada maravilhosa de também tentar ajudar você, Mariana. Ela sabe que adoro Beckett desde o primeiro dia que li “Esperando Godot” no nosso tempo de faculdade, nos idos dos anos 1980. Esta mesma faculdade que vocês se encontram às quintas. Até hoje, mesmo que eu resista, me influencio por ele.

O impacto da leitura do meu primeiro Beckett, foi parecido com o seu, Mariana.

Primeiro me perguntei se aquilo era peça: Cadê o conflito tradicional? Como esperar por alguém que nunca chega? Como pode? Oras...

Depois me encantei pela poesia do texto: meus vinte anos se identificavam com aquela solidão de Wladimir e Estragon, com aqueles infindáveis silêncios torturantes.

Então percebi que eu não deveria buscar entender nada e, sim, trabalhar aquela sensação que me incomodava e que ao mesmo tempo me seduzia tanto, produzindo, criando alguma coisa que pudesse responder àquele impacto.

Meus primeiros textos de teatro foram estimulados, provocados por esta pessoa, por Beckett. “Ponta de Caneta” de 1991 (acho), por exemplo, é um texto descaradamente influenciado pelo universo de Beckett, e que escrevi a partir dos temas áridos, bem vindos, propostos pelo grande Luis Alberto de Abreu.

O Paulo Leminski, outro grande, dá algumas dicas boas sobre Beckett:

“Talvez nenhum escritor do século XX apresente o ser humano nas mais extremas fronteiras de abjeção e precariedade como o pai de Godot. Os personagens de seus romances e peças são aleijados, paralíticos, moribundos, a humanidade no limite máximo da carência e da penúria, mais digna de nojo e asco do que piedade e pena. (...)

O desespero de Beckett não é daqueles que se curam com soluções sociais ou coletivas, no sentido de uma sociedade mais justa e mais construtiva.

É uma desesperança integral, essencial, inspirada na decadência física do homem, na falta de sentido de todas as coisas e na certeza da morte. Beckett é um escritor de vertigens.

Implacável, não acena para o leitor nenhuma luzinha de consolo.

O desespero em Beckett não tem origens econômicas ou sociais.

É um desespero metafísico, por assim dizer. (....)

Beckett é o poeta da solidão e da incomunicabilidade.

(...........)

Beckett é um virtuose de vazios.

Só um mestre dos vazios da linguagem poderia falar tão bem do vazio (ou dos vazios?) da existência.”

Pensando nisto, ainda estou sobre o impacto do espetáculo “Amores Surdos” de um grupo maravilhoso, o Espanca de Belo Horizonte, que estará neste final de semana no SESI de Mauá, e que a Adélia também colaborou na elaboração dramatúrgica. Se não assistiu, assista, Mariana. Vale por tudo: texto, direção, atores. Mas, acredito também, vale para buscar entender outras coisas...

Assistindo “Amores Surdos” me aproximei muito das referências do Teatro do Absurdo: a corrosão dos relacionamentos, da dificuldade de se dizer o que realmente precisa ser dito, do conviver com aquilo que você não pode matar, dos vazios da existência, desta solidão e incomunicabilidade percebida em Beckett.

Mariana, se tudo isto ainda não te ajudar, chame por Clarice Lispector, outra grande. Tem uma frase dela, que me valho, toda vez que me sinto perdida. É assim:

Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.

Acredite! Em última (ou primeira?) instância, o seu não entender, a sua doença, é o grande, o melhor remédio.

Existem entendimentos que ultrapassam o que convencionamos chamar de racional. Eles passam por outro caminho, ali, mais perto da alma, mais perto do intuitivo.

Pelo menos, pra mim, este caminho tem me valido muito.

Acredite, tem sido minha salvação...

Boa sorte, querida!!!

Solange Dias

3 comentários:

  1. Oi Sol!
    O bom do tempo que urge, é que damos contas de quantas competencias temos ao nosso redor, e que nem sempre temos o tempo de apreciar e comentar.

    A sensação gostosa de ler teu texto e a forma apreciada de seu olhar sobre Beckett, me contam disso.
    Aqui cito:
    "O artista só revela, de maneira contundente, aquilo que nossos olhos teimam em não ver, aquilo que nossa alma teima em não aceitar, ou busca entender. "

    Achei essa dica pra Marina, e não so para ela e me incluo aqui também como leitora, excelente. As vezes nossos olhos estao tao habituados às cristalizações normativas do comum, que esquecemos que o normal deveria ser o usual, deveria ser a critica, deveria ser o olhar, naturalmente inquietante, que há entre as luzes e as sombras desse panorama pós moderno.

    Rever nesse momento, textos do Beckett, amplificaram alguns vazios existenciais e outras tantas manobras de defesa humana que dispomos para nao ver, como esse vazio amola a alma (no sentido de afiar mesmo), ele abre a porta, e a gente meio envolto na nevoa de uma espera, entra. Ai somos fisgados.

    O bom da reflexão é que é sempre salutar. E o melhor de tudo, que nesses ocos e vazios plantamos sementes de entendimento, que podem nem germinar de imediato, mas ai nos rendemos ao tempo que urge e dele fazemos morada!
    E uma hora o sentido é desvelado, entendido e conscientemente aplicado.

    Dessas inciações também somos feitos!

    Citando e encerrando também com Clarice, minha grande lampada nesses anos de turbulencia:

    "...estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda."

    e

    "Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada."

    Para nós, Luz e sincronicidade,
    Saludos,

    Elaine

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  2. Sol, sol, sol... não é por acaso que você trouxe luz neste mundo sombrio de Beckett! Rs. Valeu muito, ajudou-nos muito mesmo! Valeu por dividir seu saber e seu tempo com nós, e é por isso que te admiro muito. Bárbara do Amaral.

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  3. "As pessoas falam muito do desespero de BECKETT. Eh o moderno "desespero" - um desespero sem alivio de um deus ex machina de ultimo ato, um desespero angustiante que excede os desesperos familiares, convertido em paralisisa moral, um desespero que nao precisa de uma catastrofe para o destacar nem de uma fala culminante para resumi-lo, porque ali esta, de um modo insistente, obsessivo, monomaniaco. Paira no ar."

    "O fato das pessoas rejeitarem BECKETT, desde que nao o facam levianamente, pode ser uma atitude muito apropriada e uma homenagem ao poder de BECKETT como artista."


    ambos do A EXPERIENCIA VIVA DO TEATRO de ERIC BENTLEY

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