segunda-feira, 21 de junho de 2010

Através de me pertencer




Contas...

Contas...

Contas...

Aviso de banco...

Propaganda das boas...

Propagandas bestas ...

Boleto bancário,

Boleto bancário,

Boleto bancaaaÁríiiio...

Telegrama de cobrança

Revista embalada em plástico negro

Risadinhas abertas, riso fechado

Quando o destinatário é percebido...

Ele tem quase oitenta anos!

Choco e me retardo

continuo

Carnes de seguro

Manual do proprietário

Anúncios de jornal de bairro

Revista de descontos do cartão de credito,

Lista infindável de envelopes,

Onde eu organizo minuciosamente

Mente

E esta me restringe e paro no patamar de uma escada empoeirada e cinzenta, perco a mão

Todos os envelopes se esparramam,

Contas, contas, contas, manual, anúncios...

Boletos bancários,

Risos ao fundo, rio também...

E uma dor cega e pesada me arde no peito,

Penso num enfarte, mas não é tão grave no físico, é na alma

Fico tomado por algo inusitado, uma falta de vontade me atinge no meio da alma, seria depressão?

A secretária da seção se abaixa e me ajuda a recolher os envelopes, me entrega, passa a mão no meu ombro numa atitude solicita e apaziguadora...

Pressente o mesmo

Sinto que pressente

Sei que guarda todos os cartões de amigo secreto que recebe na gaveta, envolto numa fitinha rosa. Paralisado e sob o olhar de um supervisor, reúno o material organizo de novo de novo, oras...de novo!

E o medo toma conta, choro

Uma angustia dolorida e consigo dar passos

Como um luto que vai tomando conta da gente sem que a gente saiba porque se está tão triste, mas no fundo eu tinha certeza dessa tristeza...

... tanto tempo...

A avó- viúva não tem mais netos??

A solteirona não tem mais fãs?

O tio da mãe me observa todo dia

Não tenho tempo em pensar no que não foi enviado.

Mas as pernas não se mexem, encosto na parede fria e uma sensação de melhora desamarga a boca, por segundos.

O vomito vem de longe, de uma saudades inexplicável.

Limpo na manga do uniforme a angustia, paro perto do bebedouro, pego a água bochecho, cuspo no ralo cheio de pó insistente.

Verifico os envelopes, continuam intactos! Que bom, minha fraqueza não os atingiu...


A menina da travessa 25 me abana a mão. Respondo com aceno também. O dono do bar oferece um café, agradeço apontando o estomago...

D. Aurora da Vidigal 33 pergunta como vou... olha nos olhos e diz:

_ A vida está te doendo?

Sorrio cinza, as lágrimas rolam e o momento congela.
Como explicar a dor no peito, para uma mulher que venceu o câncer, sem marido e filhos? Como soube? Seus envelopes ... esses delatores, me contam tudo.

Dei a velha desculpa do estomago e ensaiei um sorriso beócio, aquele assim meio Monalisa.

Entreguei os envelopes

Sorriu de volta e me ofereceu um botão de flor. Aceitei.

Um gesto iluminador.

Sol mediano, minha dor menos intensa, mas na alma o toc toc da porta da percepção atuando, poucos metros mais e termino a ronda nesse setor do bairro.

O colega anterior, gordo como um Rino, não agüentou as subidas... mas se continuasse venceria a gordura, já viram funcionário do correio gordo?

Caminhada iluminadora.

A dor não passava, mas já intuo o que vem me acertar como um raio.

Cleonice da Orla Matos, 189, chega junto ao portão com um sorriso tão grande quanto o decote, já escapei dela umas vinte vezes, mulher assanhada.

Rio sozinho, busco ofertar meu sorriso, e entrego o envelope grande com o que penso ser as apólices de seguro da patroa. Cleonice sorri.

Cleonice me encanta, se tiver coragem e a dor no peito passar, roubo essa mulher pra mim, além do mais já me disseram que cozinha bem demais.

Corro, com os últimos envelopes do dia, o cachorro de dona Adriana, vem me cheirar, a vontade de dar um chutinho de leve é grande, mas no fundo os cães só cumprem a sua função como eu, programado para colocar nos buracos ou mãos esperançosas os envelopes comuns.

Pronto, eis ai a tal percepção angustiante de novo...

Não quero mais servir de transporte pra envelopes, quero entregar cartas...

Agitado demais, atravessa a rua como louco, entregar cartas, cartas além mar,

Cartas de louvor,

De descoberta, de aproximação

Cartas delatoras

Cartas com emoção, cartas que gritam afetos

Cartas que pedem perdão

Cartas cheirosas e vincadas,

Cartas das fãs ardorosas,

Cartas de saudades e paixão

Cartas de habilitação .... (risada aguda)

Cartas narradas e poéticas,

Cartas para atletas, CARTAS PESSOAIS

Cartas navais,

De emergência

Cartas de ocorrência,

Cartas de fusão

Cartas de emancipação

Cartas de alforria, A L F O R R I A

Chego ao correio e pego o malote seguinte,

Ajunto os envelopes, numa pilha bem bonita,

O vomito sobe, JUNTO com a pilha

Porem não sai, pego a tesoura e minha

Agora franqueza, atinge em cheio a pilha de cartas,

Perfuro a todas e uma a uma


o supervisor atônito, paralisado

pelo ato não percebe que o álcool da funcionaria já estava esparramado, toco fogo no monte, inclusive no ralo de pó


Saio gritando com o fogo se espalhando, a dor desaparecendo por completo. O peito agora canta

O fogo da paixão...la la ia....

Enquanto saio tranqüilo, o fogo alastra, alastrando a impetuosidade desse sentir. Repito ao segurança do portão

EU QUERO CARTAS DE AMOR

Ele sorri pra mim, sem entender, e responde tímido: eu também! EU TAMBÉM!

Sorrimos!

Saio em direção da Orla Matos, 189, quem sabe chego a tempo do almoço?

Mas antes compro flores afinal esse romantismo ainda

me pertence.

ME PERTENCE...



(Texto inspirado nos conteúdos do Ciclo de Estudos)

Elaine Perli Bombicini

Junho invernal.


2 comentários:

  1. Tem vezes que a gente demora pra processar uma idéia. Eu sou assim. Preciso de tempo. Principalmente quando algo me causa impacto, me emociona, me desentende.
    Foi assim com o poema da Elaine. Percebi, desde a primeira leitura, a sua grandeza, a sua potência. Esperei passar o impacto inicial. E ele não passou.
    A cada leitura ele se repetia. O mal estar do narrador era meu também.
    Dessa vez me impus o dever de comentar, de dar a ela um retorno da preciosidade que ela postou nesse blog.

    Bem, pra começar, foi um texto espontâneo. Ela escreveu por iniciativa própria, inspirada nos encontros do Ciclo. Noto que dessa vez, embora a narrativa seja na primeira pessoa, há a construção de um narrador claro. Desenhou-se um personagem. Não mais o que escreve cartas (como aqueles dos outros posts), mas o que as entrega. E ser portador da burocracia que tomou o lugar da correspondência pessoal o envenena. Levar e trazer papéis mortos e frios, fossilizados, exames, contratos, contas tira de sua profissão o que havia de humano.

    É fatal e até óbvio que eu relacione esse fato à dramaturgia que não mais atende às inquietações do homem. A um modo mecânico, por vezes, de se fazer teatro. Funcional, eficiente, mas frio e distante. E quando se entra em contato com Artaud, com as peças-paisagem, com os poemas de Heiner Müller e Sarah Kane, com a solidão de Beckett, dá uma vontade de só entregar esse tipo de cartas, que falam diretamente à nossa humanidade.

    Parabéns, Elaine. E obrigada pelo presente. Esse foi o comentário mais longo que fiz no blog! Seu poema tem lucidez, emoção, humor, suspense, ritmo, pesquisa formal e você, inteira, por trás do personagem.

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  2. Adélia,
    só posso agradecer pelo comentário, um olhar teu sobre este texto, que a mim além de trazer alegria, agrega inestimável valor.
    Obrigado.
    grande beijo, Elaine

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