segunda-feira, 14 de junho de 2010

"Homens não são máquinas. Eles tem amor próprio"





O título deste post remete às frases inscritas num cartaz utilizado em manifestação após a sequência de suicídios ocorridos numa fábrica chinesa. Quem assinava o cartaz era a organização denominada “estudantes e pesquisadores contra os maus tratos (abusos) corporativos”.

Foi impossível não relacionar a imagem à obra de Heiner Müller, de quem iniciamos análise de Mauser em nosso Ciclo de Estudos da Dramaturgia Contemporânea. Homens não são máquinas, ou não deveriam ser, porém a mão do soldado na peça de Müller era também seu revólver (e vice-versa), ele mesmo se tornara máquina de matar – descontrolada, inconsciente. A revolução, ela mesma, também se tornara máquina, refém de um modelo de conduta que não permite desvios, dilemas, ponderações, mudanças.


De certa forma o sistema de produção capitalista (já analisado em nossos estudos sobre a pós-modernidade, sobre B. Brecht e mesmo na leitura de Para acabar com o julgamento de Deus, de Antonin Artaud), é também um mecanismo a criar um contingente de homens-máquina. Segundo Lucas Mendes os operários chineses da empresa Foxcomm cumprem uma jornada de 11 horas diárias, por quase duas semanas sem folga. “Dormem nove em cada dormitório, mal sabem os nomes dos companheiros de quarto, só comem no bandejão da empresa. Qualquer tipo de lanche fora das horas de refeição é proibido.” O limite de hora extras na China é de 36 horas por mês, mas lá muitos fazem 112 horas. Tudo isso para receber US$ 1 por hora.


O jornalista acrescenta que “estas condições do capitalismo chinês parecem piores do que os das empresas inglesas descritas por Marx e Engels, aqueles dois críticos do capitalismo selvagem inglês do século 19.” Um dos casos de suicídio foi o de Ma Chiangquian, “que discutiu com o chefe e, como castigo, foi limpar privadas. Em depressão e absolutamente infeliz, saiu da fábrica pela janela do nono andar.”


O carrasco de Mauser não queria morrer. Condenado pelo tribunal da revolução suplicou pela vida (inutilmente), queria ter tempo de chegar ao conhecimento, de comprovar que a sua luta valeu a pena e a revolução foi vitoriosa. No caso dos operários chineses, a escolha pela morte pode ser encarada como um sacrifício pelos que ainda vivem. Para que possam (possamos) chegar ao (re)conhecimento de que “Homens não são maquinas, eles tem amor próprio”, dignidade, valores, princípios que precisam e devem ser respeitados.


Transcrevo abaixo íntegra de notícia publicada no site do jornal Folha de S. Paulo no dia 27 de maio último. Nela é possível identificar um enredo já pronto, que certamente despertaria ideias em Brecht e Müller:


"Mais um trabalhador da fabricante de eletrônicos Foxconn, de Taiwan, se suicidou, apenas horas após o presidente da empresa, Terry Gou, ter anunciado a introdução de benefícios aos funcionários da empresa.

De acordo com a agência de notícias Xinhua, o mais recente suicídio foi de um jovem de 23 anos, que trabalhava na Foxconn havia cerca de um ano e se atirou do sétimo andar do prédio onde ficava seu dormitório às 23h20 desta quarta-feira.

Esta foi a 12ª tentativa de suicídio entre funcionários da fábrica da empresa na província de Shenzen neste ano - em duas ocasiões, as pessoas que se jogaram para a morte sobreviveram.
Segundo a Xinhua, este último suicídio veio poucas horas após uma rara visita de Terry Gou à fábrica acompanhado por jornalistas chineses e ocidentais.
A Foxconn - que fabrica o iPhone, da Apple - emprega mais de 700 mil pessoas. Mais de 400 mil delas trabalham na fábrica da empresa na província de Shenzhen, na China continental.
"Estou muito preocupado com isso. Eu não consigo dormir à noite", disse Gou, um dos empresários mais conhecidos de Taiwan.

"Do ponto de vista científico, eu não estou confiante que vamos conseguir impedir todos os casos. Mas como um empregador responsável, temos de assumir a responsabilidade de impedir o maior número de casos possível", disse ele.

Gou disse aos jornalistas que estavam sendo instaladas redes para evitar que mais pessoas pulem para a morte.

As redes estão sendo colocadas ao redor de praticamente todos os dormitórios e prédios do imenso complexo, que, de acordo com o correspondente da BBC em Xangai, Chris Hogg, "é uma verdadeira cidade, com lojas, postos de correio, bancos e piscinas de tamanho olímpico".
"Apesar de parecer uma medida estúpida, pelo menos pode salvar uma vida se mais alguém cair", afirmou o presidente da Foxconn.

Gou também disse que iria reajustar os salários dos funcionários nas próximas duas semanas e financiar a implementação de um hospital para fornecer terapias profissionais para os trabalhadores.

Setenta psicólogos foram contratados para dar aconselhamento aos funcionários.
"Nós também estamos treinando nossos empregados para se tornarem conselheiros voluntários. Mais de cem funcionários receberam o treinamento e nós esperamos que o número cresça para mil em um mês." Pactos 'anti-suicídio' Ativistas na vizinha Hong Kong vinham realizando protestos, pedindo que a população boicotasse a empresa deixando de comprar iPhones, como forma de pressionar a fábrica por melhorias nas condições de trabalho.
Eles afirmam que as jornadas de trabalho são longas, as linhas de montagem têm uma velocidade muito alta e os chefes aplicam uma disciplina militar para lidar com os trabalhadores.
De acordo com jornais chineses, a companhia agora obrigou os funcionários a assinar acordos declarando que não vão se suicidar.

A companhia ressalta que apesar da publicidade negativa, todos os dias cerca de 8 mil pessoas se candidatam para trabalhar na empresa.

A Apple, que criou e vende os iPhones, disse que vai avaliar a forma como a Foxconn está lidando com a onda de suicídios e vai continuar inspecionando as fábricas onde seus produtos estão sendo manufaturados."

http://noticias.uol.com.br/bbc/2010/05/27/mais-um-funcionario-de-fabricante-chines-de-iphone-se-suicida.jhtm


Heiner Müller nos propõe um diálogo com os mortos. Com isso ele vislumbra uma reflexão sobre o passado, seus fatos, personagens, obras, na tentativa de compreensão do presente e, quem sabe, sua transformação.


Essa sequência de suicídios ocorrida na China clama pelo diálogo. O silêncio desesperado daqueles operários é grito, alta voz, a incomodar e a pedir uma interlocução. No nosso caso, em forma de arte.


(Adélia Nicolete)

Um comentário:

  1. Isso gera uma grande reflexão, mas há de se comungar com os mortos para extrair a voz do ato suicida. Se for para ser transformado em mera máquina, prefiro sair voando pela janela, e cá entre nós, a força desse (s) ato (s)não será detida por meras redes. Alguns terão que ser os heróis em cena, para que se mude a rota, se transforme a causa e quem sabe para que se possa ouvir além. Muito interessante isso ocorrer justamente nesse período em que as notícias ficam envelhecidas rapidamente.

    Saludos,
    elaine

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