quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Réquiem - por Adriano Geraldo



(Sandra Cinto - "Sem título", 1998. Fotografia - 148x50cm)

Dois homens = 1 lava os pratos, 2 esta sentado com as mãos sobre a mesa de frente para o publico. Desolação. Diálogos lentos e silêncio.

2 = O menino está morto.
(Silêncio)
1 = É (suspira profundamente) morreu muito jovem. Uma criança mesmo... (Silêncio) Você vai voltar para casa?(Silêncio) Acho que você deveria (Silêncio) vão ficar preocupados (Silêncio) agora você precisa cuidar da saúde (Silêncio) não vai querer voltar pro hospital.
(Silêncio)
2 = O menino está morto (Silêncio) (Procura algo nos bolsos,encontra, analisa com os olhos e coloca sobre a mesa) Queria aprender a rezar... Mas não lembro... como era? Aquela? Creio em Deus pai todo poderoso criador do céu e da terra...
(Silêncio)
1 = Como ele gostava de estrelas, tudo que tinha, tinha estrelas (Silêncio) mania (Esboça um pequeno sorriso) (Silêncio) vou trocar de sabão, este não tem cheiro, minha mãe usava um sabão com cheiro bom, mas não lembro a marca. (Silêncio) Me ajuda vai, seca pra mim e guarda os pratos. (Silêncio) (Observa o outro por algum tempo e continua) e em Jesus Cristo seu único filho, Nosso senhor...

2/1= (Um acompanha o outro em um coro inseguro) Que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai, todo poderoso, de onde a de vir a julgar os vivos e os mortos. (Silêncio)(Dúvida) Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém. 
(Silêncio)
2 = O menino está morto.
(Silêncio)
1 = Ele tava trabalhando do que? Cê sabe?

2 = Tava vendendo cristais em uma loja de pintura, de quadro, alguma coisa assim... (Silêncio) Mas ainda não tinha largado a noite. (Silêncio) Você tem vela?

1= No armário ali atrás. Cuidado com o chão, porque a máquina tá vazando.

(Silêncio) (2 volta acende a vela e a coloca sobre a mesa)
2 = Salve Rainha, Mãe de Misericordia, vida e doçura esperança nossa salve... (Silêncio) Não lembro...

(Silêncio)
1= A voz bradamos... (Silêncio) (Dúvida) A vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas... (Silêncio) (Dúvida) ( 2 sai em de cena, 1 continua sem perceber sua ausência) Não lembro (Silêncio) Mas você nunca foi de rezar, até tirava sarro dessas coisas, não precisa mudar pelo que aconteceu (Silêncio) Você devia tomar um comprimido, descansar, tudo isso é muita coisa...
(Silêncio)
1= O menino está... (Vira-se e percebe-se sozinho, olha ao redor e percebe o vazio do lugar, sai.)

Luzes se apagam lentamente. A vela é esquecida.




(A situação acima foi criada por Adriano Geraldo. Trata-se de uma primeira versão, baseada em nossa apreciação da obra da artista Sandra Cinto, apresentada duas postagens atrás.
Outras versões serão escritas a partir de sugestões e análises feitas neste blog pelos colegas e outros interessados)


7 comentários:

  1. Gosto do andamento, dos silêncios e principalmente do jogo de não termos muitas informações de quem morreu: um personagem ausente que é o pulsar, o motivo da cena.
    Acho bacana a forma como você, Drica, brinca com as palavras poeticamente. E se "grudássemos" à reza, que é mais formal, frases aparentemente soltas, frases que passassem o sentimento de perda (ou não) do personagem 2 em relação ao personagem que morreu?
    Sol

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  2. Concordo com a Sol... gosto de não saber, ou melhor, de não ser informada sobre quem morreu. Dá para reconhecer seus personagens neste texto, dá para sentir o que aconteceu sem você dizer.
    Não sei se estou conseguindo me expressar claramente, mas sentir o que aconteceu é diferente de saber realmente... (me compliquei muito???)

    Gosto da reza, porque ela diz muito de forma subjetiva.

    Quanto as rubricas de "silêncio", isso me remete a uma pausa mais longa, um período de reflexão entre cada fala. "E se"... o ritmo fosse mais descompassado, em contraponto ao ritmo da reza que parece um cantico...

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  3. é um texto denso. a reza me parece irritante, mas necessária ao tom da cena. as rubricas de silêncio ditam o ritmo que o autor quer imprimir no diálogo. eu só tenho um "e se", que seria colocar menos dessas rubricas, para que o leitor pudesse se apropriar de uma maneira mais livre do texto. gostei bastante.

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  4. Oi Adriano!,
    concordo com os coments acima, em especial com o ponto da densidade do texto e do não saber algumas informações; Mas eu ainda prefiro a força emocional do primeiro texto que foi lido em sala. Sei que analisamos este, mas a força daquele final me comoveu muito mais.

    Mesmo optando por este, se puder dê um trato no outro também. é isso.
    Forte abraço,Elaine

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  5. Oi Dri,
    Gosto também das pausas, da densidade, do não saber quem é este menino... mas concordo com a Elaine, edorei o outro... e se temperrasse este com o outro?

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  6. Como já escrevi para o Adri, acho mais interessante outro texto feito em sala. A mistura do sexo com a lembrança da mãe, do sabão... era grotesco, melancólico, doentio. Sei lá.

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  7. Gosto do mistério e do quanto há de insinuações possíveis nessa conversa "velada".
    É um fragmento de uma situação de luto que não pode ser abertamente assumido, pois implicaria em culpa, preconceito, julgamentos.

    E se a primeira reza terminasse justamente no trecho "...julgar os vivos e os mortos", e isso trouxesse um componente incômodo pela relação "ilícita" entre o menino e o homem? Aliás, a oração toda tem uma carga de punição, de fatalidade. Não é à toa que ele se lembra dessa e não do Pai Nosso, por exemplo.

    Nessa toada, não seria necessária a Salve Rainha. Detona-se um incômodo na oração anterior e isso encaminha a ação até o final da cena.

    O restante fica pra direção, interpretação...

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