segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O príncipe real - por Solange Dias


(Beatriz Milhazes - Bea -  1993, acrílica sobre tela, 110 x 130cm)



A velha Beatriz olha por um longo tempo um longo tecido branco que está em suas mãos. Está sentada na varanda da grande casa velha, flores murchas, ar seco, céu cinza. De um lado, um grande cesto cheinho de linhas coloridas, de tantos tamanhos e formas. Do outro, uma cadeira velha, vazia.

Pega o primeiro bolo de linha ao acaso. Vem o azul. E Beatriz vai bordando então com seus dedos enrugados grandes círculos, círculos infinitos. Círculos de flores, pequenas, grandes, como grandes e pequenos colares de contas de flores. Flores azuis. Pensa nos miolinhos das flores. Pega a linha rosa. Borda então miolinhos rosas nas flores azuis. E no mesmo instante, em uma brisa de vento suave, pequenas flores suspensas em forma de contas vão brotando no umbral da porta, nos parapeitos da varanda, nos vãos das janelas, nos rodapés... Brotam jardins suspensos, muitos mundos, círculos infinitos.

Beatriz borda então flores amarelas e verdes, e infinitas contas de flores amarelas e verdes vão cobrindo as paredes enegrecidas da velha casa. E o chão cheio de poeira vai se tornando um grande tapete de flores enfeitado. E o ar começa a ter um cheirinho doce de alfazema.

Beatriz borda um céu lilás e um grande sol amarelo e imediatamente o dia nublado se ensolara em nuvens tão delicadamente lilases com um sol forte e amarelo que a cor do dia é uma mistura de dia e noite em um infinito.

Beatriz pensa então em bordar em meio há tantas flores, uma jovem que borda sentada em uma cadeira em uma varanda. Pensa em começar pelo vestido. Lembra de um que teve um dia: branquinho, até o joelho, mas que tinha dois peixinhos bordados, um vermelho e outro azul no barreado. Começa a bordar e imediatamente seu vestido puído e desgastado se transforma em um lindo vestido branco com dois peixinhos coloridos.

Beatriz continua bordando e seus pés se tornam macios e branquinhos, como seu vestido, e neles, pequenas sandálias cheinhas de miçangas em cor púrpura vão surgindo. Suas mãos vão ficando mais ágeis, pois acabara de bordar as mãos delicadas da jovem. E de seus braços, vão desaparecendo as manchas de tantos sóis que teve em sua vida, e de seu colo, vão desaparecendo os sulcos vazios da pele enrugada de tantas noites dormidas encolhida, se enrolando em si mesma. E seu rosto chupado, murcho, vai dando lugar a outro rosto: pele clara, cor da luz da lua. Os vincos, os traços tristes vão desaparecendo um a um como rios que secam e se transformam em campina branca, branquinha.

Beatriz borda e seus cabelos brancos se enegrecem, os fios de repente crescem por sobre os ombros e então borda também uma linda grinalda de pequeninas flores de laranjeira. No mesmo instante nascem uma a uma, pequeninas flores enraizadas em seus cabelos em um círculo sem fim.

E, bordando, Beatriz percebe ao seu lado, naquela cadeira vazia, que vai surgindo um jovem que veio do tempo antigo, alguém que ficou por tantos anos esquecido e que agora retorna corpo forte, sorriso conhecido. E num eterno beijo, Beatriz borda em volta do casal, mais e mais colarzinhos de flores, envolvendo os dois num grande abraço que fica parado no tempo, que fica suspenso no ar.



(Texto de fantasia criado por Solange Dias e inspirado em tela homônima de Beatriz Milhazes)






4 comentários:

  1. Como não sei qual foi o conjunto completo para a proposta da escrita, escreverei sobre o que senti ao ler o texto.

    Solange, nos presenteia com um texto unificador, redondo, remoto como tempo! Circular como uma dança ritual. Constrói uma grande espiral, através dos pontos bordados, do longo texto, do retrato de uma vida delicada, e uma personagem sútil que depreende uma história singular, como um resgate. Como um voltar à tras para nos mostrar o todo que o bordado contém. Gosto desse tom suave, pois por trás dele há uma força humana muito forte. Uma história para ser lida e dentro do "e se..." também para ser mostrada, um vir a ser cena, um grande monólogo, só para ganhar vida. Pois toda história de amor pode e deve estar disponível ao mundo.
    Há camadas, minúcias, caminhos à serem apontados em cada flor bordada, memórias fundamentais divididas, há continuidade sem que a vejamos, assim como o personagem que se torna visível aos poucos.
    Um beijo bordado Sol..
    Elaine PB.

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  2. Sinto neste trabalho alguns pontos estudados anteriormente, um deles é o trabalho com as imagens e o outro é o uso do mito como referência. Acredito que, apesar deste texto não utilizar-se claramente de um mito definido, ele usa um "símbolo metafórico-mitológico feminino"(não sei se posso usar um termo tão estranho - :) ) que é o bordado como trabalho feminino, um trabalho minucioso que tem profunda relação com o tempo, com a paciência, com o cuidado e com o projetar o sonho ou o futuro, o fio de Ariadne de um labirinto interno.
    O texto tem uma poesia encantadora, descrições de detalhes que trazem a tona sentimentos de compaixão.
    Não tenho exatamente um "e se..." mas as imagens bordadas transformando o cenário da história e a história transportou minha leitura para as fronteiras da metanarrativa, quem sabe não seja por ai a urdidura deste texto, quem sabe uma história dentro de uma historia dentro de outra historia num desenho espiral? Sol, acredito que caiba em seu texto até a prosa poética, quem sabe?!

    Adriano Galego Geraldo

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  3. A proposta era que, em pouco mais de uma hora, cada participante mergulhasse na obra O príncipe real, selecionasse elementos da análise realizada em grupo e elaborasse um texto a que chamamos de “história de fantasia”. Nesse termo agrupamos desde contos de fadas, fábulas, mitos, até mesmo os best selleres tais como O mágico de Oz, Alice no país das maravilhas, Harry Potter, Nárnia e tantos outros. Deixar fluir a imaginação, com base nos mínimos conceitos propostos por Joseph Campbell em seu livro O heroi de mil faces: separação, iniciação e retorno. Podendo também usar com base na definição de um território, de um tempo além ou aquém dos que vivemos.

    Em sua narrativa, Solange Dias lança mão de um recurso que já é seu conhecido e que já foi notado por críticos: a poesia. Como Adriano e Elaine comentaram, lança mão também da figura feminina e com isso compõe-borda um texto que, paradoxalmente, desfaz-se no tempo (ou desfaz o tempo) e revela o que já passou – bordados outros.

    A fantasia, no caso, pode ser encontrada nessa brincadeira, numa espécie de rewind (aquele recurso que permite ao filme ser exibido em retrocesso) que, em vez de desmanchar as ações, constrói outras. O autor tem o poder de manipular o tempo e Solange não se contenta em narrar episódios simplesmente em forma de flash back. Ela não retorna ao passado, mas evolui até ele, apresentando, inclusive, um novo personagem.

    Outro elemento das narrativas maravilhosas utilizado pela autora é bordados que criam vida, flores que brotam pela casa e a preenchem, sem que soe estranho. A delicadeza e a poesia ajudam a nos convencer de que Beatriz tem o poder de fazer nascerem flores de suas mãos, de fazer renascer a si mesma por meio de seu bordado. Porque, como lembrou Adriano, o bordar e tecer são atributos femininos e talvez tenhamos impressa em nós essa imagem - o que dispensa maiores argumentações ou convencimentos.

    O resultado aqui apresentado, repito, é fruto de 100 minutos de criação. Fantasiemos do que Solange será capaz se se debruçar, tal qual sua Beatriz, sobre o bordado desse seu Príncipe real.

    Para a autora: “e se” nessas revisões para um aprofundamento, você tratasse ainda mais atentamente do ritmo de cada frase, como o braço esticado na linha mais longa, o ponto pequeno, ou o nó. Pesquisasse nomes de pontos que são pura poesia: ponto atrás, ponto cruz, alinhavo, rococó, zig-zag, renascença. Ou pesquisasse nas telas de Beatriz as sianinhas, as rendas, até que sua história virasse também uma grande tela-vida? (Nada como viajar num bom texto...)

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  4. o texto deixa no ar, suspenso, o eterno desejo do homem de controlar o tempo e se tornar senhor de sua juventude.
    o bordado é o símbolo de um trabalho feito com amor. e tudo que edifica, renova.
    os círculos são ciclos, é a vida que dá voltas e mais voltas em torno de si mesma.
    há buscas e encontros.
    há um prazer na pureza, que conforta o leitor e o convida a uma reflexão do que realmente é importante para a aquecer a alma.
    é um bálsamo, eu diria...

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