quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Texto de Tércio Emo



Iberê Camargo - Tudo te é falso e inútil III - 1992 
óleo sobre tela  - 200 x 236cm


Nem me lembro da última vez que sentei-me nessa poltrona.
Nossa, agora percebo a quantidade de livros que juntei durante todos esses anos.
Mas que vergonha, acho que nem li metade dessas coleções, e os que li nunca terminei por completo.
Só juntei esses livros, porque sei que você gostava. Tem alguns que só estão aí porque me fazem lembrar você.

Me aposentei. Agora tenho tempo para ler tudo isso.
Tenho medo.
Se eu ler tudo, o que me restará?
Essa é a única coisa que me mantem perto de você.

Meu filho veio me visitar, diz que preciso sair de casa e mais um monte de outras coisas que não dei muita atenção. Me despedi e foi embora.
Não me lembro quando foi que ele saiu de casa e muito menos quando se casou. Lembro de minha neta e de seu nascimento. É, agora é um homem feito.

Me levanto da velha poltrona. Meu Deus, como esse lugar cheira a guardado. Observo em volta e vejo o livro que você me deu.
É, Deus, pedi pra ela ficar sempre ao meu lado, perto de mim. Quando penso nisso percebo que o Senhor tem um humor um pouco estranho.

Uma voz me chama. Será a dela? Não, é só minha mulher chamando para ver não sei o que na televisão.
Me sinto bem aqui, mas na varanda me sinto melhor. Na varanda de casa.
E lá vou eu olhar para a rua. Olho para a loja na frente de casa e percebo que na casa do lado alguém também olha.
Respiro fundo e depois de abrir os olhos digo: Boa noite - e na sequência já escuto a resposta.
Me viro, os anos passaram, mudei, ela mudou, mas o frio no peito é o mesmo de cinquenta anos atrás.
Ela em sua casa com a sua família e eu com a minha.


(Este relato foi escrito por Tércio Emo com base na apreciação feita em sala da obra de Iberê Camargo intitulada "Estrutura de objetos", e que pode ser encontrada na postagem "Festa" deste blog)

2 comentários:

  1. Acho esse final surpreendente, nada de brega. Porém, não é claro onde ele está. Acompanho a caminhada da biblioteca para a varanda, mas estranho quando diz "Na varanda de casa". (?) Mas ele já não está em casa?
    Se tirasse essa frase ou refletir melhor como posicioná-lo ao leitor, seria bom.

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  2. Tércio,

    interessante esse contraste, entre o abafado, guardado e a necessidade de respirar, de sair de uma certa acomodação que nos faz prisioneiro, porque tão somente nos colocamos nessa posição, ele se sente melhor na varanda, na varanda de casa.
    Gostei muito já na primeira leitura, gosto desse tom melancólico e por gostar e dentro de meu egoísmo, só gostaria de ver no texto uma virada, uma transformação desse personagem. Mas é só um "e se" egoísta, rs. Um abração
    Elaine

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