domingo, 27 de fevereiro de 2011

Puta - Texto de Mariana C. de Lima



Luiz Sacilotto - Concreção 005 - 2000 - escultura em aço carbono pintado, 4 m de altura
(Foto: Adélia Nicolete)




- Ainda tem muito sangue escorrendo...

cheiro de cigarro. vento. ajeita as pernas. traga o cigarro lentamente.

-Odeio esse cheiro...E se eu fechar mais um pouco as minhas pernas?

o coro atravessa a rua como na marcação de uma cena de teatro.

- Talvez com um salto mais alto...

joga o cigarro no chão. Fala enquanto pisa na bituca

- Hoje vai é ter promoção! Seis vezes sem juros...

gargalha. ventania.

- Já reparou que eu sou que nem essas árvores? Também tô enterrada aqui nessa imundice...

o vento lança as folhas secas para o chão.
o vento lança a saia da moça para o céu.

- O vento só busca meu corpo quando eu estou em mim.

cessa a ventania.
 
- Hoje ninguém me quer. Até eu odeio esse cheiro...



Luiz Sacilotto - Concreção 8215 - têmpera vinílica sobre tela fixada em duratex 
80 x 80 cm - 1983



14 comentários:

  1. Mariana...
    Outro texto delicioso. Cheio de imagens e, sobretudo carregado de poesia. Por exemplo: “Já reparou que eu sou que nem essas árvores? Também tô enterrada aqui nessa imundice...”; esta fala é na minha opinião, o ponto alto do texto, a qual faz uma ligação direta à frase donde você partiu para escrevê-lo – “O vento só busca meu corpo quando eu estou em mim”. – que é carregada de poesia também. E as outras duas falas que estão entre essas citadas, “o vento lança as folhas secas para o chão... O vento lança a saia da moça para o céu”, esclarecem a fragilidade e, ao mesmo tempo a identificação da personagem com o ambiente onde ela está, ou, onde ela vive. Outro detalhe. O texto, coloca um certo mistério para decifrado pelo leitor e, pelo público, uma vez que este venha a ser encenado. Lindo. Amei!

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  2. Muito bom Mary! O texto tem um mistério parado no ar, quando ela cita: - Já reparou que eu sou que nem essas árvores? Também tô enterrada aqui nessa imundice...Começa a se desvendar o mistério, e leva o leitor a seduzir-se por ele.

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  3. Nana,

    Uma colcha de retalhos de uma imagem cotidiana,vista por um ângulo exclusivo!
    Pesado e lírico:INCRÍVEL!

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  4. Mari... que densidade nesse texto! Quantas imagens pesadas e tristes: adorei! Gostei muito do jeito que você resolveu as rubricas, que dependendo da montagem podem muito bem se tornar texto, cenário, intenção, etc...Incrível como lendo o seu texto por várias vezes fico tentando imaginar pra quem ela diz isso: me vem à cabeça que é uma pessoa, ou uma alegoria representando a sociedade talvez, para ela mesma ? Enfim, alguém que não se importa com ela. Parece um passeio por uma mente cansada.
    Como sempre com uma linguagem simples e de fácil entendimento você deixa a leitura agradável. O silêncio presente nos seus textos os enriquecem.
    As sensações que você me proporciona ao ler esta produção muito me incomodam, mas é porque ele é muito bom...eu quero sair correndo dele depois que leio e releio. Este momento da personagem é deprimente, não sei que quero acolher ou afastar-me dela.
    Muito bom Mari, atendeu a todos os tópicos do exercício e foi além das exigências.

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  5. Esse pra mim é pura imagem e poesia. Numa encenação realista podia até ter o cheiro de sangue... Acho que ficaria “foda” !!!!
    O texto é denso, misterioso, não revela nada mas a poesia nele diz tudo.
    Gostei muito da parte “o vento lança as folhas secas para o chão. o vento lança a saia da moça para o céu.”, é tão visual, cheio de movimento, totalmente oposto a inércia da personagem “enterrada” como as árvores.

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  6. (Sinto estar lendo um monólogo, e acreditando nisso, faço os seguintes comentários).
    - Sinto falta das letras maiúsculas, dos parênteses nas rubricas, e exatamente por ler o texto como um monólogo, retiraria o excesso de travessões.
    Agora... Quanto ao texto e seu “DELICIOSO RECHEIO”
    - A força das falas instala em mim um roteiro, uma direção ou coreografia, enfim, qualquer um destes recursos brilhantemente utilizados pela autora, criando em minha cabeça uma perfeita propaganda do que e quem se quer vender.
    As sensações são específicas, claras... As imagens são denunciantes de classe social, sexo, idade, escolaridade e, posso até arriscar, de raça.
    A autora selecionou, escolheu e organizou as palavras, as imagens, o ritmo... Observo e defino observações concretas, quase palpáveis. Sinto o cheiro, seguro o vento e aprecio os movimentos (que para mim são tão paralisados... Por isso geniais, em minha opinião.).
    Quero ser a árvore, o vento, a saia... Quero ser a gargalhada. Triste mas forte. Debochada.
    Quero ser!

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  7. O que torna o texto interessante é a ausência das réplicas. O personagem fala com os próprios pensamentos. A cena está bem constituída: o conflito, o espaço e o personagem. A autora faz da licença poética no trabalho que dá à pontuação como se não se submetesse às regras.
    O movimento da cena é dado através das falas, o que dá grande força ao texto que embora seja de temática densa, tem-se sua poesia em algumas passagens: “o vento lança as folhas secas para o chão. O vento lança a saia da moça para o céu.”
    Tudo está muito bem construído no texto, mas para complementar essa análise, acrescento sugestões:
    - colocar um personagem a mais, construir um diálogo com réplicas sem perder a temática – um cliente? Um policial?um colega de trabalho? Ou não definir esse personagem e deixar por conta da encenação.
    - trabalhar um título que não traduz ou não entrega a cena. Colocar uma “armadilha” para o leitor, lembra do texto “Água salgada” da colega Tátila?

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  8. Mariana

    Seu texto é extremamente imagético. Além disso, é muito sinestésico, com uma mescla de diferentes sentidos: olfato (cheiro do sangue), tato (vento), etc.
    Quando li a sua cena, lembrei um pouco de Plínio Marcos. Entretanto, percebi que você utiliza um lirismo diferente do dele: imagens duras que completam seu sentido através de imagens que remetem certa leveza. Seu diálogo é incrivelmente poético: cheio de metáforas e signos que traduzem bem sua personagem.
    Gosto da sonoridade das frases (aliterações, rimas internas): “o vento lança as folhas secas para o chão. o vento lança a saia da moça para o céu”
    Tenho apenas duas questões para você:
     Não compreendi muito bem a função da presença do coro no seu texto? Ele representa alguma alegoria?
     Quando a personagem fala “com um salto mais alto”, ela refere-se ao verbo saltar, ou ao substantivo salto?

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  9. Mari, posso sentir o vento, ainda mais hoje nesse calor.
    Parece-me vendedora mesmo, não puta, como você intitula a obra.
    Gosto do jeito como você colocou as ações logo no início, deixa em aberto se é rubrica ou não. Lembra um pouco as frases feitas por Saramago, já leu?
    O encenador teria um bom trabalho pela frente.
    Este texto nos faz sentir, quer dizer, nos deixa a sensação de sentir o vento, o cheiro, de ver as imagens dele. Mexe com a gente, eu gosto muito!

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  10. Mari, preparando seu texto para encenação descobri um coro bacana, talvez tirando aquela parte do coro que atravessa a rua, mas sim nas seguintes falas: "o vento lança as folhas secas para o chão.
    o vento lança a saia da moça para o céu."

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  11. Infelizmente na ansiedade da cena esquecemos este coro que haviamos planejado...

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  12. Mariana
    Ao ler a primeira vez o texto causa um impacto, não sei se você teve essa intenção.
    E ao ler várias vezes, entendendo o contexto percebe-se que instiga os 5 sentidos e aguça a curiosidade.
    O texto tem imagens ricas, ritmo e silêncio. O encenador não terá trabalho para de criar o silêncio, os gestos, abafos e desabafos de quem está cansada dessa vida.

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  13. Mari, seu texto me faz pensar em várias coisas.

    A primeira é em relação a você no ateliê - se nos lembrarmos da primeira sessão e do seu “medo” de escrever. Se logo na primeira criação você parece ter superado o tal medo, nesta última, além da desenvoltura, você parece ter se apropriado de uma série de elementos que foram trabalhados ao longo desses dois módulos de Dramaturgia.

    Um deles é o lirismo. A sua observação sensível do trajeto e da cidade, da obra do Sacilotto e, na minha leitura, a sua metaforização em prostituta foram a culminância de sua participação no ateliê.

    Outro elemento é a polifonia, a multiplicidade. Neste texto você trabalha:
    as falas dos sujeitos;
    a rubrica que também é metalinguagem (“o coro atravessa a rua como na marcação de uma cena de teatro”);
    a rubrica poética, que pode ser falada, a critério da encenação (“o vento lança a saia da moça para o céu” - note as aliterações em s);
    uma linha de ação que é do vento (“cheiro de cigarro. vento.” … “gargalha. ventania.” … “o vento lança as folhas secas para o chão.” … “cessa a ventania.”)
    um interlocutor ausente, ou não definido (que pode ser um passante, outra prostituta, ou o ouvinte)
    além do que vemos presente a cidade e seu movimento

    Mas, para mim, o ponto alto é a relação prostituta-obra que você me permitiu fazer. Alguém parado, se oferecendo, gritando, sem ser notado. Alguém que absorve os cheiros, está à mercê dos ventos, plantada como um árvore no centro da cidade. Vermelha.

    Um grande abraço.

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  14. Bom dia! parece que uma vez mais o artista anteviu o que na sociedade ruiu!
    (ou está por ruir)
    Tem mais gente se fazendo de puta na ingerência desta cidade! belo texto, bela poética!
    Dias melhores e felizes para todos nós, Elaine

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